Konzern – V –

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A Organização
Agora, ali, tendo a sua recrutadora sentada à sua frente, David, depois de rememorar só o que considerava essencial e importante para o seu caso, fingindo-se de nonchalant, ficou a observá-la enquanto fazia a escolha do vinho. Teve que reconhecer a perfeição da escolha daquele vestido estampado de seda, que moldava e exibia, escondia e prometia. Cassandra, indecisa sobre qual vinho verde beberiam, mirava-o como que a pedir ajuda, com um ar de alegria tão grande que ele sentia ganas de abraçá-la e beijá-la. Para ele, se as coisas seguissem o rumo normal de qualquer encontro entre uma mulher e um homem, pelo menos naquele exato momento, tudo estaria bem. Só que não era nada disso. O encontro, ainda que aparentasse o que há pouco desejava, seria para decidir quais seriam os seus próximos passos, principalmente depois daquele longo treinamento e educação para ser outras pessoas. Às vezes chegava a rir das exigências de que a cada semana devia adotar uma das três personalidades. No último mês conseguia fazer as transições de Gérard para Ramón, de Ramón para Paolo e de Paolo para Gérard ou Ramón com tanta rapidez e segurança que até pensou estar ficando esquizofrênico.
– Muito bem, David. Você está com um excelente aspecto e parece estar em plena forma. Espero que esteja convicto do que aguardamos de você. Primeiro, porque não temos como mudar nada. Segundo, porque as coisas estão voando ao invés de caminhar.
– Estou bem, sim. Não podemos deixar estes assuntos para depois ? Afinal de contas, gostando ou não, você é a única pessoa que fala comigo sabendo realmente quem sou. Não podemos fingir um pouco que somos pessoas comuns e normais? Turistas em visita a Portugal?
– É uma boa idéia, até porque ficaremos juntos por um longo período e a minha cobertura será aparentar ser sua namorada. Então, vamos aproveitar estes momentos de calmaria.
David, ao ouvir aquelas palavras, ditas por uma Cassandra sorridente e mais linda do que o normal, sentiu-se quase sem fôlego. Pelo visto Deus existia e gostava muito dele.
– David, embora este vinho seja bom e os petiscos mais ainda, como do aeroporto fui para o hotel e de lá para cá, estou morrendo de fome. Assim, logo que terminarmos com este vinho, sugiro que a gente vá para aquele restaurante que fica aqui pertinho, “O Pereira”. Já me fizeram muitos elogios à sua cozinha, principalmente ao cozido à portuguesa e ao bacalhau à minhota que fazem. Aliás faz muito tempo que não como nada disso. Vamos lá ?

bacalhauminhota
– É claro que vamos, pois, como poderia recusar um pedido de quem é meu patrão ?
– Não é nada disso e você já sabe muito bem que temos a mesma importância. O máximo que sou é mais antiga. No resto, meu caro David, somos extremamente parecidos. É engraçado, pode até ser uma ilusão, mas, David, você parece diferente daquele David que seguí por todo o Rio de Janeiro e parte da Espanha. Ganhou mais segurança e parece mais triste.
– Ora Cassandra,você deve estar a querer brincar comigo ou ainda está a sofrer os efeitos da mudança de fusos. Como é possível ficar seguro, quando se é forçado a viver uma vida que não é a sua ? E ainda ficar alegre, gostaria que você me desse uma boa razão qualquer para que isso seja possível?                                                                                            atirarrevolver
– Um momento, você pensa que é o único a se sentir usado e manipulado? que só você sente isto ? Ora, David, eu sei que ainda não me desculpou pelo que fiz. Entretanto, a despeito do que você pensa, a minha escolha não foi fácil, porém, como já senti na pele a violência e o tipo de poder do Konzern, não tive outra alternativa. Constrangê-Io a aceitar era a única solução, pois, onde iríamos encontrar alguém idêntico ao Gérard ?
– Não é nada disso. Os vídeos e os documentos que você me forneceu, deram-me as informações e os motivos para também querer lutar contra eles. A questão é que ainda não me disseram quando volto a ser eu mesmo. Não, não precisa tentar responder, pois, tenho a mais absoluta certeza de que você nada sabe e eu não gostaria de ouvir nenhuma mentira sua. Nem mesmo uma piedosa mentira.
Cassandra nada disse, apenas, afetuosa e carinhosamente, colocou a sua mão sobre a de David, assim ficando por um bom tempo. Nenhuma palavra foi dita entre eles, que se entreolhavam envergonhados e surpresos com aquele tipo de explosão. Num certo sentido, tanto a Cassandra, quanto o David, sabiam ser aquela a primeira vez em que realmente se viam. David, incomodado com o seu comportamento, só sabia pensar que tinha feito uma grande bobagem. Uma bobagem que poderia modificar todo o planejamento de suas atividades. O melhor era pagar a conta, ir logo para o “O Pereira” e tentar fazer de conta que estavam se reencontrando.
David, embora fingindo uma descontração que não sentia, tentava adivinhar os pensamentos da jovem à sua frente, que continuava calada, com um sorriso meio tristonho. Por mais incrível que fosse para ele, David não queria que ela ficasse entristecida ou magoada, preferia aquele seu modo seguro e indiferente de tratá-Io. Ele também não conseguia atinar com as razões que o levaram àquele desabafo ressentido. Afinal de contas, na última vez em que se encontraram lá em Salzburg, ela havia lhe perguntado se gostaria de modificar alguma coisa no plano original, se não precisava de mais algum tempo para assimilar os papéis que iria desempenhar. E ele, envolvido pelo o que de aventura tudo aquilo significava, dissera que estava tudo bem e que estava pronto.        salzburg1                                                                                              
Era uma situação que nunca passara por sua cabeça, já sonhara estar com a Cassandra em mil e uma situações, em que era o senhor de todos os movimentos e dono de todas as certezas. A diferença entre os seus sonhos e aquele momento, mais do que a fantasia, estava naquilo que era a sua própria essência. Uma essência que em nada diferia do que todas as pessoas desejavam. Ser feliz, ter o reconhecimento e a sensação do dever cumprido, seja como uma pessoa produtiva, seja com um ser humano capaz de afeto e amor. David, ainda que um pouco escandalizado com os seus rompantes explosivos, lá no fundo estava satisfeito, pois, sabia que bem raras vezes poderia ser ele mesmo. O seu medo, talvez o único e real temor, residia na dificuldade que tinha em entender quem era e o que se passava com a Cassandra. Só sabia desejar que ela sentisse parte do que ele sentia. Não precisava nem ter a mesma força e sentido. Queria apenas que ela gostasse dele.
Enquanto caminhavam em direção ao restaurante indicado por Cassandra, que, por sinal, ficava bem perto daquele onde estavam, David, sem saber como interromper o constrangedor silêncio que os separava, apenas pensava e fazia comparações com outros acontecimentos já vividos por ele. O que estava sentindo era muito semelhante ao que sentira um dia, quando, depois de saber da morte acidental de duas primas, lembrou-se de que era o único sobrevivente daquele grupo de meninos e meninas, seus primos, que com ele tinham vivido os mágicos dias da infância e parte da adolescência. Sentiu-se perdendo a memória de sua própria existência. Ele era a única prova de tudo aquilo que tinha acontecido. Pedro Paulo, Pedro Aurélio, Clara, Maxmiliano, Haroldo e Corina, parceiros de seus jogos infantis, das primeiràs dúvidas e descobertas da puberdade já não podiam mais testemunhar e compartilhar aquele passado. Ficou muito triste ao descobrir que no plano individual, o tempo até que permanece quando há testemunhos de uma mesma vida, mas, quando não há com quem dividir as lembranças e só o futuro parece contar, o sentimento de solidão é só o que fica.
– David, que tal sentarmos ali naquela mesa dos fundos ? Não tem ninguém sentado perto.
– Você está zangado?
– Não. É que vez por outra fico pensando umas bobagens e acabo me envolvendo nesse tipo de pensar. Prometo que não vai mais acontecer e que já passou. Afinal de contas viemos aqui para provar do afamado cozido à portuguesa e degustar um bom vinho verde. Só no pensar em comer bem, o meu humor melhora logo.

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– É uma boa idéia o cozido. Vamos fazer assim: um cozido para nós dois e o bacalhau à minhota para finalizar. Que tal?
– Para mim está ótimo. Agora, que tal você ir me adiantando sobre o que irei fazer depois. E por que você tem que se passar por minha namorada ? É prêmio ou castigo?
-Não seja apressado, ainda temos muito tempo. (rindo) E sobre ser prêmio ou castigo, só o futuro dirá. Afinal de contas, não há nenhuma pressa.
O jantar decorreu em boa paz e descontraída alegria, tanto David, quanto Cassandra, tinham superado aquele embaraçoso momento de antes. Comeram e beberam com extrema satisfação, demonstrando que poderiam manter uma convivência bem amistosa, tal era a tranqüilidade e a segurança que sentiam um com o outro. Foi desse modo que David obteve as primeiras informações sobre quem era a Cassandra. Soube que ingressara na Organização há mais de oito anos, que estava com 32 anos de idade, solteira e argentina de nascimento, embora se considerasse um pouco brasileira, pois, viveu no Rio de Janeiro, dos 4 aos 18 anos. Seu pai fora alto funcionário de uma grande empresa argentina de alimentos e até voltar para Buenos Aires, logo após a Guerra das Malvinas, em setembro de 1982, jamais demonstrara qualquer tipo de envolvimento ou preferência política. Era o exemplo clássico do tecnocrata privado, indiferente e distante das questões políticas, embora às vezes ela sentisse que tudo aquilo não passava de fingimento.                                     malvinasargentinas
– Para mim, ainda que conhecesse bem o país e Buenos Aires, pois, todo ano costumava gozar as minhas férias por lá, não estava sendo muito fácil voltar a ser uma porteña. Ora porque já tinha me habituado ao modo carioca de ser. Ora porque ficava angustiada com aquele clima opressivo gerado pela derrota militar nas Malvinas, com o fim da ditadura e pelo avanço da crise econômica.
– Por quê então você continuou por lá ? não teria sido melhor retornar para o Rio de Janeiro, onde você já estava acostumada?
– É. O certo seria isso. Só que não foi possível, pois, como o meu único irmão estava com a sua vida completamente organizada no Canadá, ele não queria mais voltar para Buenos Aires. Você sabe como é. Mulher, filhos, emprego e respeito profissional, tudo o afastava, além das incertezas políticas que rondavam o país. Ele fugiu para lá quase no mesmo dia em que a Isabelita foi derrubada. Nessa época ele estava concluindo o curso de Jornalismo, Propaganda e Marketing e trabalhava para um grupo empresarial ligado ao Lorenzo Miguel, da CGT. Com o golpe militar de Jorge Videla, em março de 1976, Rafael teve que fugir e preferiu colocar milhares e milhares de quilômetros de distância entre ele e a nova ditadura. O resultado é que tive que continuar em Buenos Aires, juntamente com meus pais e uma irmã mais nova, a Consuelo.
– Como foi que você se envolveu com a Organização? O que a levou até ela?
– Tudo aconteceu de forma tão rápida que, quando fui pensar no que estava fazendo, já não tinha mais como recuar. Foi assim….Buenos Aires -
Cassandra contou que dois anos depois do retorno à cidade de Buenos Aires, já durante o governo AIfonsín, seu pai, que fazia parte da direção financeira da empresa, Nutrifomento Agropecuario S/A, um dia fez uma reunião com toda a familia e informou que seria dispensado pela firma por estar em desacordo com as fusões e alianças financeiro-comerciais propostas pelo novo grupo controlador da empresa. Contou que o melhor para eles, levando-se em conta o quadro econômico do país e certas dificuldades que poderiam viver por causa de sua reação a esse grupo, seria dar um tempo fora do país. Como a sua família tinha se desembaraçado de todos os bens que possuíam no Rio de Janeiro e transformado tudo em imóveis em Buenos Aires e na província, para viajarem de novo era preciso vender quase tudo e por um bom preço. Algo que não poderia ser feito de uma hora para a outra. O problema é que não estavam conseguindo vender nada, sempre que aparecia um futuro comprador, logo em seguida havia a desistência.
A situação só não era muito pior porque seu pai era solicitado como especialista free-lancer e com isso conseguia ganhar dinheiro suficiente para manter um padrão de vida mais ou menos comparável ao que tinham no Rio de Janeiro. Ela e a irmã estudavam. Ela, Sociologia na Universidade de Buenos Aires. A irmã em um colégio particular. Durante dois anos foi possível aquele tipo de vida até sumirem os trabalhos temporários de seu pai, mas, como ainda tinham uma boa reserva financeira, capaz de mantê-Ios por mais uns três ou quatro anos com gastos controlados, foram ficando.                                             facultadcienciassociales
As complicações para o lado deles ainda demoraram um pouco a chegar, como se estivessem esperando que as dificuldades financeiras e profissionais de seu pai fizessem efeito. Embora ela e a irmã tivessem conseguido empregos para custear os seus gastos pessoais, roupas, fins-de-semana, diversões, etc., o quadro recessivo provocado pelo Plano Austral aprofundava a melancolia e a depressão de seu pai, Rodolfo, que sem saber como sair daquela situação, acabou por aceitar uma auditoria a ser feita em sua antiga empregadora, a Nutrifomento. Três meses depois de ter iniciado a auditoria, Rodolfo é preso por sonegação e fraude fiscal, acusado pelos mesmos diretores que o tinham contratado. A trama foi planejada para que ele fosse responsabilizado por um desvio de impostos da ordem de dois milhões de dólares. Um valor que em muito ultrapassava todos os bens familiares.                                                                                         floridacordoba
O resultado foi uma tragédia, Rodolfo se suicida no dia 1 de maio de 1986, com um tiro no peito, aproveitando a oportunidade de todos terem ido participar dos festejos do Dia do Trabalhador na Plaza de Mayo. Para Cassandra, Consuelo e Silvina, sua mãe, era apenas o início de mais problemas e confusões, pois, tiveram que se desfazer de todos os seus bens para saldar parte da “dívida” fiscal, ficando apenas com o apartamento que moravam, na avenida Córdoba, quase com Florida. O pior de tudo, segundo a Cassandra, foi assistir a lenta e gradual demolição física e mental de Silvina, que andava pelos cômodos a perguntar em voz alta: “Por que eles mataram o Rodolfo ?”
Era uma pergunta que ninguém sabia como responder. Entretanto, como a vida continuava a correr e muita coisa precisava ser posta em ordem, certo dia, quando arrumava e selecionava papéis e documentos que pertenceram a Rodolfo, Cassandra encontrou um recibo de aluguel de um cofre bancário, junto havia um envelope com uma chave e uma série de números. O banco, ainda que argentino, ficava em Montevidéu, assim, só quando chegaram as suas férias é que pôde atravessar o Rio da Prata e verificar o que continha no cofre.
Ao abrir o cofre viu que havia apenas uma pequena valise de segredo. Nervosa e sentindo um receio que não sabia de onde vinha, pegou a valise e rapidamente saiu do banco à procura de um café pouco freqüentado para estudar o conteúdo daquilo que deveria ter sido muito importante e de extremo valor para o seu pai, tanto que o cofre estava com os aluguéis pagos até 1995. Lá mesmo no centro da capital uruguaia, instintivamente, escolheu um café quase vazio e os poucos clientes pareciam ser pessoas aposentadas, que lendo os jornais gastavam o tempo. Mais tarde, quando novamente voltou a Montevidéu, é que notou o nome do café, “Café lpanema”. Os números do envelope eram os códigos para abrir a valise, que foi aberta com muita cautela. Encontrou, além de uma carta de Rodolfo, diversas cópias de memorandos, de ordens de pagamento e de depósitos bancários.
Na carta, Rodolfo explicava que se alguém que não fosse ele mesmo a estivesse lendo era porque estava morto. Em linhas gerais a carta contava sobre a sua descoberta de que a Nutrifomento, há tempos realizava operações financeiras de pagamentos, depósitos e saques no exterior muito acima de sua capacidade de realizar lucros ou dividendos. De início pensou que essas transações eram uma espécie de burla fiscal, mais tarde, depois de ter analisado os balanços internos e externos da empresa, verificou que aquelas operações só existiam para legalizar grandes aportes financeiros, que posteriormente eram deslocados para algumas contas de bancos das Bahamas e Ilhas Cayman, principalmente para um obscuro lnternational Caribean Bank. Em sua investigação Rodolfo ao identificar alguns dos beneficiários dessas operações ficou estarrecido com o envolvimento de inúmeras personalidades e companhias estrangeiras e argentinas. As cópias dos memorandos, das ordens de pagamento e dos depósitos bancários representavam as únicas provas que tinha obtido em dois anos de pesquisa e investigação até cair na desconfiança dos novos dirigentes da firma. Nessa carta testamento, o pai de Cassandra além de informar sobre esses grupos e pessoas, deixou bem claro que temia por si e pela segurança de sua famIlia.
Segundo as pesquisas de Rodolfo, tudo indicava que havia uma grande organização manipulando parte considerável do sistema financeiro mundial, com fundos de origem duvidosa, através de investimentos diretos em Bolsas, por meio de fundos, pelo controle de empresas dedicadas à commodities e de bancos de investimento. A sua situação começou a ficar complicada e difícil quando conseguiu localizar a fonte de alguns “empréstimos”, um inexpressivo banco de Liechtenstein, há pouco citado num relatório da ONU como um importante” distribuidor” de recursos financeiros do mundo do crime, de sonegadores fiscais e etc.. Ao ser descoberto tentou explicar que estava apenas verificando se aquele dinheiro podia ser prontamente utilizado pela empresa e quais eram as condições do empréstimo. Foi comunicado que aquele assunto era apenas da competência dos diretores executivos. Logo foi afastado de suas funções e depois demitido, sendo, então, advertido de que ficar em silêncio seria a melhor coisa para ele e família.

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