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KONZERN – II –

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Tudo pareceria muito irreal se não houvesse muitos indícios e fatos dando credibilidade e força aos argumentos que lhe foram apresentados naquele primeiro encontro. Há muito sonhava com aventuras, fortuna e viajar pelo mundo. Desde garoto, embalado pelos romances de aventura e filmes policiais, tinha a profunda vontade de um dia também sentir aquelas emoções e sensações. O problema era a realidade, com o seu cruel vezo para desmancha-prazeres. Como sua família, de classe média, média mesma, era numerosa, logo teve que procurar emprego e com o emprego vieram as pequenas e várias responsabilidades do dia-a-dia. Responsabilidades que o prendiam mais e mais ao cotidiano de alguém que sempre sabe que vai sobrar dia em seu salário. Além dessa peculiar perseguição da realidade, por obra e graça de suas veleidades e predileções intelectuais, escolhera ser professor de História. Lá no fundo ele sabia que aquela escolha estava umbilicalmente ligada aos seus sonhos de heroísmos e fantasias de aventuras, uma espécie de Indiana Jones latino-americano com Schliemann.

A grande diferença estava no tipo de vida que levava, ensinando para quem não queria aprender e que acreditavam ser a História um assunto destituído de razão nos novos tempos globalizados. Sem contar com a questão salarial que o obrigava a uma jornada de seis aulas. A coisa era tão repetitiva e sem nenhum valor didático ou científico que às vezes temia ser substituído por um CD-Rom. Nada em sua vida prenunciava aventuras ou riscos, tanto que até a sua participação política, se é que aquilo merecia esse nome, ficou restrita ao movimento classista reivindicatório. O único perigo que correu não teve nada a ver com as aventuras sonhadas, pois seria demais ver uma conspiração nacional ou estrangeira contra ele, quando numa das enchentes do Rio de janeiro, quase é engolido por um grande bueiro aberto. Os riscos ficavam por conta de sua ex-mulher Louise, que vivia fazendo ameaças de prisão caso atrasasse as pensões alimentícias de seus dois filhos. Entretanto e a despeito desse tipo de vida, havia a tênue esperança de alguma coisa acontecer e tornar realidade os seus sonhos de não-mesmice. O que havia de diferente entre os seus sonhos e o que estava acontecendo, era a falta de controle sobre os acontecimentos. Nos sonhos ele detinha as rédeas, agora, não só tinha medo, como estava sendo manipulado de longe por pessoas desconhecidas e bem poderosas. Lá no íntimo sabia que a curiosidade, a possível fortuna e o rompimento com a rotina é que ditaram as regras e as justificativas para a sua concordância.Alfama4.jpg

Naqueles momentos em que caminhou da Graça até ali e ao subir as escadinhas de São Estevão, compreendeu em toda plenitude as palavras escritas por Cecília Meireles para alguém que viesse a visitar Lisboa, “ficas tão rico de antigamente, tão vencido por um amor de cancioneiro, por uma ternura conventual, dolorosae ao mesmo tempo desejas sorrir, dançar, não pensar nada, ficar por essas praças, por esses jardins que são a imagem da vida e por onde andam crianças como pequenas flores soltas, com laços no cabelo, como felizes borboletas aprisionadas. Ficas extasiado”. Como só tinha olhos para o que de histórico poderia haver e para o afanoso trabalho de reconstrução do que fora destruído pelo incêndio de alguns anos antes, nem mesmo notava que o poente dava novas cores para tudo. Sentia-se muito à vontade e seguro naquela paisagem.

Num certo sentido era assim mesmo que se sentia naquele dia em Barcelona. Estava feliz, contente e muito à vontade por estar ali, julho de 1994, realizando uma velha aspiração. Conhecer a terra de EI Cid, D. Quixote, EI Greco, Goya, Velásquez. Picasso, Lorca, Antonio Machado e também de seu professor de espanhol no colegial, frei Joselito, cuja pronúncia hoje sabia ser andaluz. O Museu do Prado, a Porta do Sol, Toledo, Granada e Sevilha já eram parte de sua memória. Agora estava no país catalão, em sua principal província, Barcelona das ramblas, da Església de la Sagrada Familia, de Antonio Gaudi, Dali e Miró. Como os seus dólares tinham o grave defeito da infertilidade reprodutora e ainda pretendia conhecer Paris e Lisboa, resolveu visitar EI Pueblo Español e dar a Espanha toda por visitada. Na verdade, ainda que nem a si mesmo confessasse, esperava conhecer una bella maja e, depois de contar que era um simples professor brasileiro gozando uma licença, convencê-la da verdade dos versos de Antonio Machado, que recomendava fugir do amor pacato, seguro, sem riscos ou aventuras, pois, afirmava o poeta andaluz, no amor o sensato é a loucura.

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El Pueblo Espaíiol, criado para a Exposição Internacional de Barcelona, em 1929, durante o período da República Espanhola, condensa os aspectos mais característicos e sensíveis da arquitetura regional de toda a Espanha. As fachadas dos edifícios, fielmente reproduzidos, estão agrupadas segundo as antigas divisões geográficas da península. O Conselho Municipal de Barcelona tem dado vida a esse singular Pueblo, ao garantir instalação às oficinas de artesanato mais tradicionais do país: os vidros soprados e estirados, mosaicos, bordados, fundição de ferro em forjas, pratarias, figuras para presépios, estamparias, retábulos, ouro e aço de Toledo, leques, mantilhas. O interessante é que todos esses produtos são fabricados ante os olhares maravilhados do público, que também pode ver folguedos e festas folclóricas de todas as partes da Espanha.

Estar ali era como se pudesse andar por toda a Espanha usando botas de sete léguas. Aquela era a sua segunda visita ao Pueblo. O dia estava quente e ao chegar a Plaza Castellana, suado e um pouco cansado, só pensava em ficar à sombra e beber um bom vinho branco gelado. Mesmo com toda a canseira e suor, que enxugava com lenços de papel, ainda tinha olhos para se alegrar com os muros de pedra cobertos de hera, os lampiões, os arcos e as esculturas murais. Afinal de contas, sentia que valera a pena todo aquele sacrifício feito para lhe garantir essa satisfação, já nem se lembrava do quanto se privara para fazer aquela viagem. Recostado na sombra daquele arco e ocupado na limpeza dos óculos e enxugando o suor, só prestou atenção na moça quando ela já estava em sua frente. Era uma mulher muito bonita, entre os 25 e 30 anos, morena, curtos cabelos negros, um olhar seguro, firme, a boca bem talhada. O lábio inferior ligeiramente caído dava a impressão de estar pronta para ser beijada.

– Professor David, boa tarde. Como está? Não, não fique assustado. Há tempo que desejo lhe conhecer. Calma. Calma. Vamos conversar.

Quem lhe falava parecia realmente saber o que estava fazendo, dizendo, além de se expressar em um perfeito português, quase sem sotaque. Ficou ouvindo, olhando para as pedras da calle e para os turistas que passeavam por ali. Era um desses perfeitos dias espanhóis, cheio de luz e calor. Se não fosse por estar sendo conduzido para fora do Pueblo pelas mãos de uma jovem mulher, muito bonita, desconhecida e forte, tal a pressão sentida no braço, ele juraria ainda estar dormindo no quarto do hotel, talo seu aparvalhamento e docilidade. Só sabia andar, ouvir e olhar com curiosidade para a estranha. Nem mesmo tentar ser espirituoso estava conseguindo. Mais parecia gado sendo levado para o abate.

– Faz tempo que estou querendo lhe falar, Ou melhor, que pretendemos lhe falar. Sabemos tudo a seu respeito. De sua família, dos colégios que leciona, dos seus ganhos, sonhos e até de suas fantasias. O senhor foi criteriosamente escolhido para uma missão. É mais do que natural a sua perplexidade e espanto, afinal de contas, sempre foi assim com todos nós. Professor David, antes de tomar qualquer atitude precipitada, é preciso que me ouça. Juro que será bom para o senhor.puertadeavila.jpg

Assim, falando a respeito de seu conhecimento sobre ele, gentil e firmemente, a estranha o foi levando para um carro estacionado próximo a Puerta de Ávila. Durante o trajeto até as cercanias da rambla S. José, aproveitando o silêncio, David tentava botar um pouco de ordem na sua mente aturdida. Por mais que tentasse as mais absurdas hipóteses justificadoras de uma situação como a que estava vivendo, nenhuma chegava perto. Era o mais legítimo e puro non-sense. Será que estão pensando que sou outra pessoa? especulava. Rapto ou seqüestro não poderia ser, pois, for a o dinheiro guardado na pochette embaixo da calça, nenhum outro ele possuía. Só podia ser erro de pessoa. Assim que ela estacionou o auto e escolheram um dos cafés da rambla, a língua de David destravou.

– Moça, olhe aqui uma coisa. Exijo uma explicação bem explicadinha para tudo isso, caso contrário…

– Caso contrário o senhor chamará a polícia e dirá que está sendo assediado por uma mulher mais frágil que o senhor. É isto?

– Não seja boba. Só quero saber o que está acontecendo, pois, tenho a mais absoluta certeza de nunca tê-Ia visto antes e no entanto você sabe mais de mim do que eu mesmo. Você falou sobre uns projetos. Não quero saber quais sejam e também não tenho a menor vontade de participar em nenhum deles. Só quero terminar a minha viagem em paz, sem nenhuma morena bonita me dizendo o que devo ou não fazer. Moça, eu já fui casado e cansei do faz isso, não faz aquilo. Só desejo concluir a minha viagem e usar todo o tempo que me resta de licença como tinha planejado. Nada vai mudar isso, nem dinheiro, nem sexo, nem droga e rock’in roll. Fui claro?

-Claríssimo, só que agora é muito tarde para haver mudança nos planos. Fique calmo e quieto. É melhor o senhor continuar sentado e ouvir o resto. David ­creio jã poder lhe chamar assim, não é ? – lamento lhe informar que jãtomamos todas as providências necessãrias para obter a sua aquiescência, desde a sua demissão dos colégios que leciona, até no pagamento antecipado de dois anos das pensões alimentícias para seus filhos. E para demonstrar a nossa boa vontade e desejo de ajudã-Io, fizemos um depósito de cem mil dólares em sua conta corrente lã no Rio de Janeiro hã uns cinco dias. Aqui estão os comprovantes de tudo, mais as cópias de suas cartas de demissão. Você agora é nosso contratado e para efeitos legais você faz parte do corpo de professores de uma Universidade mantida por nós. Anualmente você receberã U$ 150,000 como salãrio e todas as suas despesas pessoais serão de nossa responsabilidade. Está tudo certo e bem legal. Não existe a menor possibilidade de queixa jurídica. Se tentar algo assim, o maior e único prejudicado será você.

David, embora profundamente surpreso e amedrontado com tudo aquilo que estava ouvindo, tentou argumentar e reagir às imposições feitas pela morena. Ela o ouvia com uma placidez irritante, dando a impressão de que estava com um pequerrucho teimoso e cheio de vontades. David sentia estar falando aos ventos e nem mesmo quando ameaçou se levantar para ir embora ela alterou o seu jeito calmo e sereno.

– Você ou vocês, pouco importa quem sejam, não podem fazer isso. Vocês não têm esse direito. V ocês pensam que são o quê ? Deus ou algo parecido ? Se você não for uma rematada mentirosa, é uma psicopata das mais loucas.

– É melhor você ficar bem calmo, sentadinho aí e ouvir o resto. Nada o que diga ou faça agora mudará alguma coisa. É melhor ouvir o que tenho para lhe contar.

David continuou sentado e ouviu. Um ouvir esquisito, pois, enquanto metade de sua mente recusava a crer no que estava acontecendo, a outra parte ouvia e se fascinava. Não chegou a sentir nenhum gosto nos ponchitos e nem nas tapas, tudo estava sem sabor. A morena, Cassandra – um nome pouco apropriado, pois, de acordo com a momentânea opinião de David, o mais adequado seria Pandora – integrava um organismo transnacional cuja função era evitar o controle político e econômico do mundo por parte de uma grande corporação internacional, que desenvolvia e mesclava atividades legais com ações criminosas. Para ele, aquilo tudo não era verdadeiro, era um autêntico pastiche dos filmes de James Bond. Sentia-se como um personagem de pocket-book policial. Rambla.jpg

A mulher bonita, mistérios, sabedora de perigosos segredos. O café ao ar livre. Gente de todas as partes do mundo. Só faltava ela levar um tiro e morrer dizendo uma frase que seria a chave para o desvendamento de toda a trama. Até a Cassandra, com o seu nome trágico-novelístico, os negros cabelos curtos, aqueles olhos azuis-escuros, o tailleur creme, o sotaque indefinível, a grande bolsa marron-claro, tinha todas as características de um bom film noir. Ficou ouvindo por quase duas horas aquele interminável relato de intrigas políticas, econômicas e policiais. Houve momentos em que quase caiu no riso aberto. Não pelos argumentos e história apresentados por ela, mas, principalmente, porque depois de alguns cálices de jerez, mais e mais sentia o quão absurda era a situação em que estava metido. .

Um professor de História, 40 anos, 1,82 m de altura, 78 quilos de peso, com uma incipiente miopia, pouco atlético e sem nenhum pendor para esforços físicos. Enfim, segundo a própria opinião, o tipo mais inadequado para missões de capa-e-espada ou na linha bondiana. Estava mais para o intelectual sedentário de gabinetes ou bibliotecas. Aliás, foi esse seu lado intelectualizado que se ligou no relato. Para ele, além deste aspecto de seu temperamento, a vontade de viver uma grande aventura, sentir na própria pele todos os arrepios e emoções vividos por seus velhos heróis, foi, mais do que outra coisa o elemento chave para a sua concordância.

Como se não bastassem esses estímulos, ainda que de modo escondido e dissimulado havia um outro apelo visceral, pois, David não conseguia deixar de observar a beleza de sua interlocutora e de fantasiar a respeito de um possível envolvimento amoroso entre os dois. Enquanto ouvia todas àquelas histórias rocambolescas e de suma gravidade, David ficava imaginando como é que ela seria sem a seriedade que a vestia mais do que a saia, a blusa e o tailleur. O que ele via era bastante sedutor e agradável a todos os seus sentidos, principalmente quando arfava pela emoção do relato e as duas grandes e rijas pêras ameaçavam a segurança do tecido, ou quando nervosamente cruzava e descruzava pernas merecedoras de mais do que uma missa, um ano sacro inteiro. Embora muito interessado na exploração visual e olfativa de Cassandra, David acabou prestando muita atenção ao que ela dizia, pois, certo ou errado, já estava envolvido.

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Konzern – I –

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O tempo estava muito agradável, sem frio, nem calor. Era um bonito fim de tarde, o sol, estimulando as cores das fachadas e telhados daquele pedaço d’Alfama, provocava-lhe recordações de outros tempos e lugares. Sua aparência e o comportamento eram o de alguém atento e maravilhado com o trabalho de restauração do casario e das vielas que, por serem lembranças do passado, curiosamente tinham atualidade. Demonstrava calma e segurança sentado ali naquela pequena taberna, quase no Largo de São Estevão, numa mesa que lhe permitia ver quase todo o largo e os acessos das ruas Guilherme Braga e do Vigário.

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A taberna, embora fosse bem pequena e com certo jeito de provisória, trazia-lhe a memória de outras tabernas, visitadas e prazerosamente freqüentadas quando passeava pelas ladeiras de Santa Teresa, Gamboa e Santo Cristo, no Rio de Janeiro. Mesas de ferro doce, tampos de mármore quase branco, um balcão de madeira maciça, aparentando ter sido feito de uma só leva e do mesmo tronco de árvore, prateleiras cheias de bebidas, correntes de paio dependuradas, chouriços, salames e outros defumados, reforçavam a lembrança pelo cheiro característico. Um cheiro que se misturava ao de castanhas, que era o cheiro de todo o bairro. Como estava sem fome e sabia que a demora poderia ser longa, provou e aprovou a ginja com pardal frito. Aliás, ainda estava bem vivo o sabor do bacalhau assado e do chouriço com ovos que comera no dia anterior, lá na Parreirinha d’Alfama. Come-se bem por aquelas bandas, tanto que se não fosse pelas subidas e descidas da escadaria com seus degraus de basalto, temeria por acrescentar uns quilos a mais em sua silhueta.

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Sua calma era real. Entretanto, algo o fazia estremecer, quase a sentir frio. Há pouco, no caminho para lá, acreditava que aquele encontro seria bem simples e fácil. Bastava ouvir as instruções e sair a cumprí-las. Sabia que fazer aquilo era aceitar a mais completa e total mudança de vida que algum dia pensara. E olha que a sua vida já estava muito modificada desde o dia em que dissera o primeiro sim. O fato real e concreto é que tinha concordado com aquelas propostas malucas, tanto que lá estava ele, em Lisboa, no Largo de São Estevão, numa terça-feira, 15 de outubro de 1996. De vez em quando chegava a pensar de que tudo aquilo não passava de um chiste. Era uma idéia bem fugaz, pois, logo lembrava que ninguém gastaria mais de quinhentos mil dólares apenas para lhe pregar uma peça. Até agora tudo correra bem para o lado dele.

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Ganhara um bom dinheiro até agora, seja pelos cento e cinqüenta mil dólares anuais de salários, seja pelo fato de que todas as suas despesas pessoais ficavam por conta de seus empregadores. Aprendera muita coisa, um autêntico homem do mundo, mesmo quando fora obrigado a viajar pela Europa, trocando de cidade, sem falar com ninguém, porém com ordens precisas sobre onde e quando estar. Primeiro foi Florença, Via Dell’ Ariento, atrás do Mercado Central, às 15 horas, 5 de maio de 1995. Depois, às 16 horas, 12 de julho de 1995, Paris, Montmartre, Lamarck e Damremont. Este ano, Londres, Soho, Beak.Street, em frente ao Hospital Saint James, 6 de setembro, às 11 horas. Nessas cidades, tão logo se esgotavam os quinze minutos determinados para a espera de alguém que nunca aparecera, aproveitava para conhecê-Ias como se fosse um florentino, um parisiense ou um legítimo e entediado londrino, sempre obedecendo a máxima de que “em Roma, como os romanos” e de que o mais exposto é menos notado.
Agora, ali em Lisboa, estava melhor preparado para ficar sozinho e muito mais para conhecer as delícias daquela cozinha que Eça tão bem tinha descrito, assim como apreciar os petiscos das toscas tabernas da Madragoa, depois um fado e o encanto da Mouraria. Embora estivesse quase torcendo para novamente ficar sozinho, sabia que alguém viria conversar com ele a respeito do que precisava saber e fazer, pelo menos assim era o que ela prometera, tanto que nem determinara o tempo de espera. Há mais de seis meses que não conversava com ninguém sobre o seu papel naquele enredo. Mesmo naquele período em que ficara sobre treinamento e estudos – artes marciais, etiqueta, táticas militares, economia, finanças, geopolítica, línguas, etc.-, nenhum de seus instrutores e professores aumentara o conhecimento que obtivera com os vídeos e documentos recebidos regularmente.
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Tudo ele fez para conseguir mais informações e descobrir quem o estava empregando. Seduzira instrutoras, professoras, dera caros presentes, invadira o computador do centro de treinamento, tentara saber qual o papel dos outros treinandos, nada obtivera. O máximo que conseguira foi perder algumas liberdades, como as saídas de fim-de-semana e os passeios pelas cidades próximas. A informação parecia não estar ali naquele conjunto de casas no sopé do Hoher Göll. Assim, como não havia outro modo, o jeito foi fazer dos treinamentos, dos estudos e das pequenas aventuras esportivas um processo para não enlouquecer de curiosidade. É bem verdade que a sua recrutadora, nas quatro vezes que o visitara, ao sabatiná-lo sobre os vídeos e documentos, lenta e casualmente ia dando forma e conteúdo ao que desejava saber. O problema é que isso ainda era um procedimento bem interno, sem as características de algo consciente e bem lógico.
Pensou nos filhos e em sua família que estavam bastante orgulhosos de seu sucesso como professor na Europa. Já estivera com eles três vezes desde o primeiro encontro com seus atuais empregadores. Na primeira feita, quando voltou ao Rio de Janeiro, dois meses depois desse primeiro contato, ficou apavorado quando soube que todos os seus familiares, amigos, inclusive a sua ex-mulher e antigos colegas de magistério acreditavam que tinha sido contratado por uma Universidade particular, sediada em Salzburg, a terra natal de Mozart. Esse conhecimento viera dos documentos encaminhados aos colégios em que lecionara e pelos cartões-postais enviados para quase todas as pessoas de seu relacionamento. O dinheiro remetido era a prova que faltava, principalmente para a sua ex-mulher, Louise, “puxa vida, até quem enfim você consegue fazer alguma coisa certa. É bom não se esquecer que ainda nos deve umas férias na Europa”.
Pelo menos, tinha que reconhecer e ser grato, aquela dinheirama estava lhe assegurando certa calmaria em seu trato com Louise e com os filhos André e Jean-Marc, fundamentalmente por causa do novo apartamento em Laranjeiras, próprio e muito maior que o outro – numa daquelas travessas do Flamengo que, além de ter um aluguel bem caro, primava pela umidade e uma pernanente penumbra em qualquer tempo, hora ou estação do ano. Para os pais e irmãos, que sempre lhe ajudavam em caso de necessidade, comprou um pequeno sítio em Teresópolis e presentes. Uma mágica só possível pela surpreendente valorização da moeda brasileira frente ao dólar.
Do local em que estava, ele a viu chegando, tinha subido pela rua do Vigário. Vinha andando calmamente, como se todo o tempo e o espaço do mundo ao seu dispor estivessem. Seus passos firmes e o modo de olhar chegavam a chamar a atenção pela agradável e inusitada mistura de força e fascínio. O vento, lascivo e exibicionista, contando com a cumplicidade de seu estampado floral vestido de seda, moldava formas que, se não eram as mais perfeitas, para ele, David, tinham a força e a beleza necessárias para construir a mulher ideal. “É uma bela mulher”, pensou, observando aquelas pernas torneadas que sustentavam e davam movimento para as curvas esculpidas pelo vento. Tudo contido em 1,70m de altura e uns 60 quilos de peso. O cabelo “príncipe Valente”, tanto no corte, quanto na cor, era a perfeita moldura para aqueles olhos azuis-escuros. Olhos que circulavam entre a sensação de tristeza, zombaria e riso aberto em décimos de segundos. Ao vê-lo, sorriu com alegria. Um sorriso que a transformou de bonita em lindíssima. David nem notou que correspondera ao sorriso, tão entretido estava em mirá­la e preocupado por se sentir novamente muito alegre com a sua presença, embora ainda não soubesse classificá-la como amigo ou inimigo.
Enquanto ela cada vez mais se aproximava, David, instintivamente, lembrou-se das lições de Musashi Miyamoto – ken no sen, kai no sen e tai tai no sen – acuar, aguardar para tomar a iniciativa e acompanhar o inimigo, antecipando-se a ele. Estas lições e as de Sun Tzu, de a “Arte da Guerra”, já faziam parte de sua mente e de seu comportamento cotidiano. Para ele, um professor de História, até que não foi muito complicado aprender e compreender os usos e aplicações dessas lições. Lições que foram de extrema importância para memorizar e automatizar os seus reflexos e reações durante o exaustivo período em que aprendeu artes marciais e táticas militares. O difícil foi aprender a desenvolver o hara, o qi e torná-los parte integrante de seu giri.
A chegada dela o tinha retirado de seu cham tai. Levantou-se para recebê-la e antes dos formais cumprimentos, houve um momento em que pelos olhares ambos expressaram a alegria de estarem juntos de novo. Ela deu a impressão de aprovar o modo de como estava vestido. Blazer azul-marinho, camisa azul-clara, gravata azul com duas tarjas, uma vermelha e uma amarela- escuro, calça e botas marrons. Os cabelos castanho-claro, curto e ligeiramente gris, os óculos de armação quase retangular, realçando os claros olhos castanhos e compondo o conjunto, davam-lhe um aspecto distinto, respeitável e de fina educação. Reforçado pelo seu porte físico, 70 quilos de rijos músculos em 1,82m de altura. Chegar àquela compleição física e atlética lhe causara muito cansaço e dores no corpo. Um sacrifício plenamente justificável pelo resultado atual. Hoje, fizesse o tempo que fizesse, estivesse onde estivesse, refazia todos os principais exercícios e movimentos das artes marciais e de auto controle físico-mental. Era o processo que o mantinha em forma e o modo que lhe permitia mentalmente sustentar o disfarce escolhido por ele.

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