Arquivo do dia: fevereiro 24, 2011

Konzern – VI –

coloniauruguay

Foi em Colônia que Cassandra teve o primeiro encontro com a Organização. Quando se preparava para adquirir a passagem de retorno à capital argentina, pouco antes de apanhar o dinheiro, ouviu: “Não compre nada. Não olhe para trás. Vá até o estacionamento dos táxis e pegue o quem tem um chofer com o paletó no braço. Vá logo se quiser viver”. Espantada e com medo, Cassandra sem pensar nada, fez o que aquela voz tinha ordenado. Foi ao estacionamento e entrou no táxi indicado, que rapidamente tomou a direção de Maldonado. Só depois de alguns minutos é que ela se lembrou de perguntar a razão de tudo aquilo. O chofer disse que tudo estava bem, que não precisava ter medo, pois, só queriam ajudá-Ia. Ao chegarem em Maldonado, pararam em um luxuoso restaurante. O chofer disse que a estavam esperando. “É um casal de meia idade, sentado à esquerda da porta de entrada, na terceira mesa. Eles lhe explicarão tudo”. Cassandra não teve nenhum problema em achar o casal, que calmamente parecia estar apenas esperando por alguém. Foi recebida com alegria. Uma alegria que ela sentiu ser sincera e que a tranqüilizou, pois, ainda que estivesse seguindo à risca tudo o que lhe diziam, nos poucos instantes em que raciocinou soube que era algo ligado ao suicídio de Rodolfo, mas, sempre havia a dúvida.
– Cassandra, como vai ? Fez boa viagem ? Débora já estava preocupada com o seu atraso. Deve ter sido o tempo, que nesta época do ano é bem instável.
– Querida, que bom que chegou. Espero que esteja descansada, pois, hoje mesmo teremos que viajar. Enrico, faça alguma coisa, peça vinho para nós. Cassandra deve estar com fome e sede.
– É verdade, estou com bastante sede e fome. Mas…
– Querida, não se preocupe com nada. Daqui a pouco nós vamos sair e você saberá de tudo o que precisa saber. Agora, vamos aproveitar o vinho e esta tortilla montada.            
tortillamontada
Enquanto comiam, naquele faz-de-conta familiar, Cassandra observava os seus anfitriões. Enrico devia estar entre os 50 e 55 anos, já Débora aparentava uns 40 anos de idade. Ambos estavam vestidos com extrema elegância e cuidadosa simplicidade. Quem os olhasse, mesmo com muita atenção, notaria que eram pessoas habituadas àquele ambiente. Enrico era bem magro, alto, cabelos grisalhos curtos e um permanente sorriso nos lábios. Débora, recordava uma modelo, tal a esbelteza e os traços finos de seu rosto. Faziam um casal muito atraente e, por incrível que possa parecer, tão comuns que seria muito difícil alguém se lembrar de como eram fisicamente.
O gentil tratamento e o carinho que transmitiam foram os remédios para aliviar a tensão e o medo que ela sentia. Aos poucos, como uma conversa bem natural, foram lhe contando o que iriam fazer depois que saíssem do restaurante. Ela seria entregue para um outro membro da Organização, que cuidaria de sua volta para Buenos Aires, de sua segurança e das informações necessária à sua proteção. O fato concreto, entretanto, era de que ela estava correndo um grave risco de vida, juntamente com sua irmã e mãe. Os responsáveis pela morte de Rodolfo há muito os vigiavam, esperando recuperar possíveis documentos deixados por ele. Documentos e informações como aqueles que estavam em seu poder.                                                                           aeroparque
Durante a sua viagem de volta, no pequeno e veloz avião, soube da existência do Konzern, dos seus objetivos e das medidas que ela teria que adotar para a própria segurança e de sua pequena família. Deram-lhe uma semana para cuidar de tudo. Até lá estaria sob a vigilância da Organização, que teria sempre alguém perto dela. As instruções eram bem simples: andar sempre em grupo, não sair de noite e caso algo estranho acontecesse, fosse o que fosse, teria que telefonar para um determinado número e deixar tocar três vezes, interromper e tocar mais três vezes, que imediatamente viriam pessoas para lhe dar proteção.
Antes de tudo começar, quatro treinamentos foram feitos e para a surpresa dela, em menos de cinco minutos os seus guarda-costas se materializaram em sua porta. A parte mais difícil foi convencer Silvina dos problemas sem poder explicar quais eram. A solução veio por intermédio de Consuelo, que sugeriu fugirem para o Canadá, sob o pretexto de visitar Rafael. Com a ajuda da Organização, que lhes forneceu dinheiro e novos documentos, Silvina e Consuelo viajaram para Montreal para irem ao encontro de Rafael. Cassandra, embora tenha viajado junto com elas, ficou em Nova Y ork. Lá em Nova York, já mais familiarizada com os métodos da Organização, Cassandra aprendeu o que faltava saber sobre o Konzern e como usar todas as técnicas e conhecimentos para combatê-lo.                             newyork
Graças à proximidade com o Canadá, Cassandra pôde visitar a sua mãe e irmãos. Rafael e Consuelo tomaram conhecimento de tudo, dos motivos da morte do pai, da ação do Konzern e de sua decisão de ingressar na Organização. Embora ambos tenham demonstrado grande vontade em ajudá-Ia, Cassandra lhes afirmou que não corria nenhum risco e que o melhor era ficarem por lá, cuidando da mãe e de suas próprias vidas. Era a primavera de 1988.  
Cassandra, já de volta à Nova York, foi encaminhada para o setor de contrainformação por sua extrema habilidade em aprender línguas e por ter uma aparência que lhe dava livre trânsito nos principais centros operacionais do mundo. Um dia, após uma nova checagem nos dados a respeito de movimentações financeiras, graças à genialidade de um hacker que lhes possibilitou o acesso aos computadores da Swift (Society for Worldwide lnterbank Financial Telecommunications), notou que três pessoas diferentes movimentavam recursos entre si e uma só conta parecia ser o centro das operações. Como essa conta era de um tradicional banco monegasco, pesquisou e descobriu que há seis anos essas operações eram realizadas, com uma característica interessante, eram sempre em cima de outras operações especulativas de grande porte.       bancomonaco
Levou esse fato ao conhecimento de seus superiores que decidiram enviá-la a Mônaco para tentar descobrir o dono da conta. Dois meses depois, com a “ajuda” bem desinteressada – US$ 20,000 – de um graduado funcionário desse banco, conseguiu o nome de Gérard Perin, o seu endereço e tomou conhecimento da existência de Belen-tigui. Soube que Gérard era um exportadorimportador franco-argelino, que viajava muito, sem amizades conhecidas, de sua família, do acidente que o deixara órfão e de sua tia Claire, ainda morando em Argel.
Um dia, disfarçada de funcionária sanitária da administração de Monte Carlo, visitou a casa de Gérard tentando obter mais informações, o resultado foi uma fotografia roubada e a descoberta de que Belen-tigui era mande. A partir da foto de Gérard com Claire e da naturalidade de Belen-tigui foi que Cassandra pôde descobrir sobre a sua vida de mercenário na África. Como ninguém sabia quando Gérard viria, Cassandra deixou um grupo vigiando a sua casa. Um cuidado recompensado em menos de dois meses com o aparecimento do franco-argelino, quando foi filmado e fotografado em várias situações. Algo só possível porque a vigília era feita por quinze pessoas diferentes e em trechos específicos do condado.
Tão logo soube que Gérard ia viajar, colocou mais quinze pessoas para descobrir para onde ele iria. Assim que foi informada de que era para a Argentina, viajou antes e deixou gente esperando por ele lá em Ezeiza e no Aeroparque de Palermo. Dois depois de sua chegada em Buenos Aires, foi avisada que Gérard tinha chegado e qual era o seu endereço. Não ficou surpresa quando soube que já não era mais o Gérard, mas, sim, o Ramon Martínez, um argentino de Mendoza e de excelente relacionamento com os mais poderosos do país.                                                                       mendozadowntown 

Seguindo as instruções recebidas – “a paciência e a constância é que contam quando se quer descobrir alguma coisa”- , ela e seus amigos foram lentamente desvendando a história do Ramon. Faltava saber porque todo aquele trabalho de criar uma outra personalidade. Quando ele tomou o avião para o México, onde ia analisar alguns livros antigos, dois companheiros da Cassandra o acompanharam. Lá na Cidade do México, outros o estavam esperando e só assim é que ela pôde esperá-Io em Nova Y ork. Ficou impressionada com a calma e a segurança que ele demonstrava, além da mudança no modo de se vestir e agir.  Era um outro homem. Se não fosse pelo tumultuado tráfego, ela o teria perdido de vista, tal a rapidez com que se deslocou do aeroporto para a estação de trem. Ele ia para Boston. Como só estavam ela e mais um companheiro, ela decidiu acompanhá-Io no trem, enquanto o outro tentava montar a vigília lá em Boston. Chegando em Boston, já com a ajuda dos outros, foi fácil saber onde morava e o que fazia. No entanto, por mais que tentasse tirá-la da cabeça, a pergunta conyinuava viva: – por que três nomes e três vidas?
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No hotel, sem saber o que fazer com aquela situação, pois Cassandra tinha se registrado no mesmo apartamento dele, David lembrou-se que ainda era cedo, cerca de onze horas da noite. Assim, tão logo a jovem acabou de arrumar as suas coisas no guarda-roupa e cômoda, David, com uma casualidade que não sentia, propôs que fossem gozar um pouco das delícias noturnas da cidade de Ulisses. Cassandra, muito alegre, disse que sim, mas antes precisava de um chuveiro e trocar de roupa. Unindo a palavra aos gestos, Cassandra, talvez de propósito, começou a se despir. David, encabulado e ao mesmo tempo louco para vê-Ia, rápido foi ao frigo-bar e pegou uma pequena garrafa de vinho tinto, o Periquita.
Só quando já estava lhe oferecendo um copo do capitoso vinho é que se lembrou da acepção popular do nome do vinho no norte do Brasil. Não resistiu e rindo conseguiu ficar à vontade com ela, que sem a menor vergonha, mostrava o porquê da predileção do corpo feminino como exemplo de obra de arte. Curvas, montes, vales antecipando profundezas, harmonicamente distribuídos e pulsantes, foram as imagens que David teve enquanto a observava andando pelo apartamento. Bebeu o vinho com calma e torcendo para manter o fair-play, pois, embora estivesse excitado, sabia que qualquer aproximação física teria que partir dela, até então agindo como se ficar nua na frente dele fosse a coisa mais comum da vida dela.                                          solarvinhodoporto
Mais tarde, no Solar do Vinho do Porto, entre um cálice e outro, degustando umas azeitonas que pareciam pequenas bolas negras, David lhe perguntou se a idéia dela passar por sua namorada era da Organização ou dela. Cassandra riu e lhe disse que como tinha autonomia suficiente para decidir e como tinham que ir à Argentina, o melhor seria daquele modo. Lá ele seria o Ramon e mesmo familiarizado com a “vida” do mendocino, ela seria muito útil para lhe explicar sobre os detalhes da operação. Não podia haver nenhum erro, pois, seria a primeira vez que a Organização tentaria, através de uma infiltração, desorientar algumas importantes atividades do Konzern. Além disso, ela pretendia, com a ajuda dele, destruir o grupo que controlava a Nutrifomento. Sozinha ela não tinha nenhuma chance de aproximação, já com o Ramon ao seu lado, tudo ficava mais fácil e era bom que ele se lembrasse que ela era argentina, fora ser a nova responsável da Organização pela América do Sul.
– David. David. Não seja inconveniente e nem tente me deixar embaraçada. Por que você está preocupado se eu quis ou não esse tipo de arranjo ? Com mais um pouco você acabará me perguntando se conheci o Gérard. Se fui sua namorada, amante, etc.. A resposta é uma só – não o conheci pessoalmente.
– É, Cassandra, você tem razão. Eu ia mesmo perguntar se você tinha conhecido o Gérard, pois, quando me contou sobre ele, pode ser até que eu esteja errado, mas, senti uma ponta de admiração por ele.
– E não era para ter ? Olha. Sozinho, contando apenas com sua experiência e alguns conhecidos, ele avançou muito no conhecimento do Konzern. Não cheguei a conhecê-Io porque não quis. Embora eu o respeitasse como um excelente quadro de informação e contra-informação, além de suas qualidades militares e de financista, lá dentro dele havia alguma coisa que me incomodava muito. Ele parecia uma máquina, sem emoções e sem alma. Não era o tipo de homem para mim.
– Como foi que obtiveram todas aquelas informações sobre ele ? Alguém se aproximou intimamente dele?
– Não houve dificuldade alguma. Como ele tinha criado uma cobertura à prova de bisbilhotices comuns, com legítimos documentos e certidões da Itália, não adotava nenhum tipo particular de segurança. Aliás, a legalidade de sua cobertura é que nos ajudou, pois, tanto em sua casa, quanto na Giordano Bruno, semanalmente era feita uma faxina por uma empresa. Ao substituirmos os faxineiros tivemos fácil acesso. Na casa e na livraria nada encontramos, fora o que é normal de se encontrar nesses lugares, o único fato estranho era existir um poderoso computador em sua casa, porém sem nenhum disquete ou CD-Rom. Graças a um nosso especialista, ex-arrombador de cofres, descobrimos um cofre na adega da casa. O cofre era tão sofisticado que levamos quase quatro dias para abrí-Io. Lá dentro estava tudo aquilo que você já tomou conhecimento, inclusive o vídeo.
– Que planos fizeram para ele?
– Até analisarmos e investigarmos tudo, nada fizemos. Mais tarde, quando tivemos a firme convicção de que sua luta contra o cartel era real, decidimos apoiá-Io.
– Como apoiá-lo se vocês, num certo sentido, eram clandestinos como ele?
– O plano dele, segundo nossas análises, dependia de muito dinheiro. Só com muito dinheiro é que conseguiria se aproximar dos chefões do cartel. Aí, como temos influência e bastante cobertura financeira, indiretamente dávamos um jeito de fornecer informes confidenciais e aval para empréstimos bancários.
– Quer dizer que vocês sabiam de tudo o que se passava com ele? então por que não evitaram a sua morte?
– Nós sabíamos apenas o que ele tratava via computador. O nosso hacker tinha montado um sistema de interface entre o computador dele e um nosso computador, que estava permanentemente ligado ao dele. Sabíamos de suas contas, de suas três vidas, porém nada a respeito do que pensava. Deste modo, a morte dele foi uma grande surpresa para nós.
– Foi acidental ou não?
– Ninguém sabe. Se não foi acidente, estaremos indo diretamente para a caverna do tigre com essa nossa viagem para Buenos Aires. É um risco que não gostaria que houvesse. É um problema bem desagradável e que não deveria existir.
David bem que tentou continuar a conversa, principalmente porque sentiu que o perigo era maior do que ele pensava. Foi em vão. Cassandra, rindo lhe disse que teriam muito tempo junto para discutir sobre aquilo. “É melhor aproveitarmos esta noite, quando somos nós mesmos”. David, volta e meia, esquecido daquela estranha realidade, deixava-se envolver pela alegria e beleza de Cassandra. Embevecido, quase tolo, olhava-a e via uma belíssima maja, num vestido de seda azul, decotado, com um colar de rubis realçando outras duas jóias.  cordilleradelosandes
Cassandra, com as maçãs do rosto afogueadas, começou a lhe falar de que um dos motivos para ela ir com ele para a Argentina, talvez mais do que a sua sede de vingança, era a vontade de passar uns tempos nos Andes. “David, desde bem pequena que sonho com os Andes e como fiquei quase quinze anos no Brasil, nas férias, ou ia para Buenos Aires, ou para o nordeste brasileiro. Agora chegou a minha vez de efetivamente conhecer a Cordilheira”. David riu muito, quando ela, depois de uma breve pausa, retomou o mote dos Andes e sorridente lhe disse que era uma mulher muito sortuda, pois, não só iria para o lugar de seus sonhos, com toda a pompa e circunstância de uma “rica estanciera”, como era levada por um homem corajoso, inteligente e elegante. David, ainda que contente com aquela noite, estava preocupado com o futuro imediato, à volta ao hotel. Cassandra, a exemplo de todas as mulheres, soube o que o David pensava e temia, pousa a sua mão sobre a dele e fitando-o com olhos que tudo prometiam, sem nada falar, disse-Ihe que ela era mesmo a sua namorada.

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