David e Cassandra, entre muito comovidos, surpresos e aliviados com o que viram e ouviram de Gérard, em silêncio apenas se entreolhavam. E assim ficaram por algum tempo, até que David retirando as luvas e dizendo que ia pegar mais vinho, quebrou o silêncio e os dois começaram a rir e a pular de alegria. Aliviados e felizes com o fato de tudo estar como tinham planejado, brindaram a Gérard e intimamente agradeceram a atitude dele. Depois dos brindes, risos e guarda das jóias e documentos no cofre da biblioteca, trocaram de roupa, saíram para almoçar e rever a cidade. O que havia de documentos deixaram para ler mais tarde. Na rua, contentes, depois de margearem a Plaza San Martin, desceram pela Florida, tal qual os grupos de turistas que iam e vinham. Passearam até o Café Tortoni, na avenida de Mayo. Um dos lugares prediletos de Ramón, de Cassandra, de numerosos argentinos e turistas habituais.
Escolheram uma mesa perto da janela para poderem observar o movimento da rua. O Café tem as características de um café parisiense, seja na decoração art nouveau, seja no mobiliário, mesas redondas de carvalho e mármore. As cadeiras, de couro vermelho, são bem confortáveis, grandes, daquelas que convidam a uma longa permanência. O mozo, num formal terno cor do vinho da Borgonha, anota o pedido: dois licores Tia Maria, dois cafés, com ingridientes. Os ingridientes valem por uma refeição: uma grande travessa com feijão-de-lima ao alho, salada de batatas, sanduíches de queijo Roquefort, biscoitos crocantes, presunto, queijo, azeitonas verdes, batatas chips, frios de carne e molhos. Sem nenhuma pressa, tiveram tempo para lembrar alguns aspectos do vídeo de Gérard e da tragédia que foi para ele aquele acidente em Porto Vitória, quando visitava Jeanne e Julie. Concordaram que ele era realmente um mestre na arte da informação e contra-informação. Um inimigo bem perigoso, muito hábil, por sorte do lado deles, agora um excepcional informante e orientador.
Na volta, decidiram visitar o escritório platino da Raloma para que David pudesse publicamente assumir o papel de Ramón. Ao ingressar no edifício, David, a exemplo de Ramón, respondia aos cumprimentos de boas-vindas com acenos e poucas palavras. Antes de subir para o escritório, o concierge, Pablito, entregou-lhe um pequeno envelope com um cartão em que havia um telefone e o nome Mariana. Pablito lhe disse que essa moça passara por lá, entre o meio-dia e às 13 horas. O escritório da companhia abrangia metade do sexto pavimento, dispondo de duas entradas: uma para os clientes e funcionários; outra, defronte do segundo elevàdor, dava acesso ao gabinete de Ramón, foi por ela que entraram, graças à duplicata da chave feita pela Organização, que tinha feito o mesmo para o apartamento. Lá dentro, depois de fazer um certo ruído para avisar que estava na sala, pelo interfone pediu que sua secretária, Marta, uma bonita senhora de 40 anos, típica descendente de espanhóis, com cabelos e olhos negros, avisasse a todos os funcionários de seu retorno.
– Marta, traga os últimos balanços e relatórios. Avise ao Rodrigo que quero vêlo daqui a pouco. Gostaria, também, que providenciasses dois cappuccinos e água. Obrigado.
Poucos minutos depois, uma sorridente Marta, ingressou na sala, sobraçando uma pasta de documentos e trazendo uma bandeja com os cafés e água, e enquanto os arrumava numa pequena mesa de reunião, alacremente ia falando.
– Senhor Ramón, que alegria revê-Io. Desta vez o senhor se superou em termos de sumiço. Já estávamos preocupados. (e olhando para Cassandra com um ar de admiração e surpresa) Aqui estão os balanços, os relatórios e este pacote que chegou há uma semana. Parece ser muito importante e confidencial, pois, está com um lacre de segurança. Como o senhor tinha me dito pelo telefone que tomasse muito cuidado com este pacote de seu amigo francês, guardei-o em casa. Como o senhor Diego ligou avisando da sua volta, fui em casa e o trouxe para o senhor.
– Marta, muito obrigado pela preocupação e por seu cuidado, só que estava em boas mãos e fazendo o que há muito precisava. Viajar e descobrir novos mercados. Marta, a Cassandra é minha noiva, gostaria que ela, quando vier por aqui, seja tratada da mesma forma que eu.
– Claro, senhor Ramón. Muito Prazer senhorita. Ah! como a senhorita é linda.
– Muito prazer Marta. Obrigada pelo elogio. Estou muito contente em lhe conhecer pessoalmente, pois, de ouvir falar, já a conheço há algum tempo.
– Marta, por favor, peça para que o Rodrigo venha até aqui. O café está muito bom. Diga ao Juan que ele continua com a mão certa, um verdadeiro mestre, que eu e Cassandra agradecemos pelos cafés. Marta, você agiu muito bem em guardar este pacote em sua casa. Obrigado.
Assim que a Marta saiu, David e Cassandra examinaram o pequeno pacote. Fora enviado de Mônaco, continha dois disquetes e uma carta de Gérard. Na carta, dizia que estava sobrevivendo às custas de muitas drogas e cirurgias – “creio estar com apenas 70% de mim mesmo”-, com poucas possibilidades de uma total recuperação. Nos disquetes estavam informes sobre as últimas operações comerciais e financeiras de Ramón e Paolo realizadas por ele via Internet e telefone. Como sabia que a carta só seria lida por ele, David, no escritório, era preciso que ao conversar com Rodrigo evitasse qualquer assunto comercial até tomar conhecimento do que havia nos disquetes. E que não ficasse nervoso ou preocupado com nada, pois, assim como a Organização os mantinha sob vigilância, ele, Gérard, também adotara algumas medidas para a proteção deles. Medidas que tomariam conhecimento pelos disquetes. No momento, o melhor era só conversar sobre amenidades com o Rodrigo e outros. Mal acabaram de ler a carta, David pegou os disquetes e entregando-os para Cassandra, pediu que ela fosse vê-Ios no apartamento, contactar a Organização, dizer o que estava acontecendo e pedir orientação, e que antes de ir ao Orleans passaria por lá.
Logo que Cassandra saiu, um sorridente e alegre Rodrigo entrou no gabinete. Era tão alto e magro quanto Ramón, cabelos e olhos negros, parecia estar em excelente forma física para os seus cinqüenta anos. Vestia um terno cinza-escuro, risca de giz, o que lhe dava a dúplice aparência de um rico executivo e de alguém com uma crueldade escondida. Uma sensação criada por seu modo felino de andar e olhar, como se a espreita da presa e esperando o melhor momento para atacar. O seu riso, no entanto, parecia realmente franco e sincero. Depois dos cumprimentos, denotativos de certa familiaridade entre os dois, ao invés de falar sobre os negócios da companhia, Rodrigo preferiu comentar que ele, Ramón, estava com excelente aspecto e que havia muitas novidades merecedoras de seu conhecimento. Novidades que contaria logo mais no Orleans, pois, os outros poderiam acrescentar os detalhes necessários para que ele, Ramón, fIZesse a avaliação, embora, na opinião dele, “tudo estava correndo melhor do que tinham planejado e sonhado. Vamos ganhar tanto dinheiro que será impossível alguém se colocar contra a gente. Você ficará surpreso”. Depois de comentar o quão bem Ramón aparentava estar e de parabenizá-Io pela noiva, “Diego me contou que ela é lindíssima”, despediu-se dizendo ter que sair para providenciar mais uma remessa de vinhos para os novos clientes arranjados por Ramón.
DavidlRamón ainda ficou mais um pouco lendo os relatórios da companhia, depois, saiu para cumprimentar a todos os empregados e, a exemplo de Ramón, parou na pequena copa/cozinha, bebeu mais um cappuccino e elogiou a qualidade do café feito por Juan. Sentiu que todos o consideravam como sendo o Ramón. Uma situação bem irônica, ele era a falsificação de alguém que realmente não existia. Gostou de ter sido aprovado pelos funcionários e mais grato ficou pelo fato de Ramón sempre ter sido um patrão generoso e gentil, pois, para ele era mais fácil ser assim, que era o seu modo pessoal de agir e ser. Depois de se despedir de todos, calma e firmemente, preferiu seguir pela Viamonte até a Esmeralda e ir direto para o apartamento. Ia testar a entrada alternativa e verificar quais as vantagens que ela dava. Ficou surpreso e contente ao descobrir que a entrada/saída alternativa ficava numa galeria, portanto com ampla segurança para entrar e sair sem levantar nenhuma suspeita. Cassandra, que não o esperava chegar por aquele caminho, levou um grande susto quando o viu descendo a escada do apartamento. David, rindo muito, pediu desculpas e prometeu que passaria a avisá-Ia quando tivesse que usar aquele caminho, “mas, é muito bom para a gente entrar e sair sem que ninguém note algo”.
Ela foi logo contando que os disquetes continham todas as informações necessárias para que ele tocasse a Raloma e a livraria/antiquário Giordano Bruno com conhecimento e sucesso. Em termos fmanceiros, já com a retirada que Gérard fez para Jeanne, Julie, Claire e Belen-tigui, o restante orçava em quinze milhões de dólares, mais as propriedades, exceptuando-se as de Mônac~, Argel e Porto Vitória. Havia ainda uma série de recomendações sobre com tratar com os produtores de vinho de Mendoza. E que já tinha ligado para o telefone indicado por Gérard. Era de uma agência especializada em alugar carros e depois que disse o nome de Gérard, foi avisada que dentro de uma hora, tanto o carro especificado, como o chofer indicado, estariam à disposição. O que deveria acontecer logo em breve. O outro telefone que Gérard sugeria, por questão de horário, só poderia ser tentado amanhã, entre as 10 e 13 horas. Disse que o pessoal da Organização também ficou espantado com a “ressurreição” do franco-argelino e que iriam voltar a monitorá-Io pessoalmente, bem como aumentar as medidas de segurança sobre eles dois. Ainda estavam conversando quando o interfone tocou e alguém chamado Guto, disse ser o chofer enviado por Gérard ~ que trazia uma encomenda.
Guto, embora desse a sensação de força e muito vigor, era bem magro, cerca de 1,70 e uns cinqüenta anos, ao entregar dois vídeos, que eram a encomenda, disse que era o responsável pela proteção dos dois enquanto estivessem na América do Sul, por ordens do Gérard, e que o carro também fazia parte do esquema. Além disso, sempre haveria duas “sombras” a lhes acompanhar. Explicou que nos vídeos saberiam mais a respeito das medidas de segurança tomadas por Gérard, que iria deixar o carro numa garagem ali perto e entregando um minúsculo telefone celular para cada um, “para ser usado como meio de comunicação entre eles, comigo e com as suas “sombras”. É um telefone bem especial, pois, está programado para receber apenas as ligações das pessoas registradas. Além disso, pode ser usado como gravador à distância. É só ligar e deixar funcionando. É preciso que tomem muito cuidado com eles, pois, eles podem muito bem salvá-Ios de poucas e boas”. De uma coisa Cassandra e David ficaram certos, o Guto era rápido, de poucas palavras e um provável europeu, ainda que falasse muito bem o porteño. O sotaque, mesmo pequeno, denotava-o como um mediterrâneo. David achou melhor que eles estudassem tudo mais tarde, depois que voltasse da reunião no Orleans. Uma reunião que ele considerava ser fundamental para o sucesso de sua vida como Ramón.