KONZERN – VIII –

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David e Cassandra, entre muito comovidos, surpresos e aliviados com o que viram e ouviram de Gérard, em silêncio apenas se entreolhavam. E assim ficaram por algum tempo, até que David retirando as luvas e dizendo que ia pegar mais vinho, quebrou o silêncio e os dois começaram a rir e a pular de alegria. Aliviados e felizes com o fato de tudo estar como tinham planejado, brindaram a Gérard e intimamente agradeceram a atitude dele. Depois dos brindes, risos e guarda das jóias e documentos no cofre da biblioteca, trocaram de roupa, saíram para almoçar e rever a cidade. O que havia de documentos deixaram para ler mais tarde. Na rua, contentes, depois de margearem a Plaza San Martin, desceram pela Florida, tal qual os grupos de turistas que iam e vinham. Passearam até o Café Tortoni, na avenida de Mayo. Um dos lugares prediletos de Ramón, de Cassandra, de numerosos argentinos e turistas habituais.
Escolheram uma mesa perto da janela para poderem observar o movimento da rua. O Café tem as características de um café parisiense, seja na decoração art nouveau, seja no mobiliário, mesas redondas de carvalho e mármore. As cadeiras, de couro vermelho, são bem confortáveis, grandes, daquelas que convidam a uma longa permanência. O mozo, num formal terno cor do vinho da Borgonha, anota o pedido: dois licores Tia Maria, dois cafés, com ingridientes. Os ingridientes valem por uma refeição: uma grande travessa com feijão-de-lima ao alho, salada de batatas, sanduíches de queijo Roquefort, biscoitos crocantes, presunto, queijo, azeitonas verdes, batatas chips, frios de carne e molhos. Sem nenhuma pressa, tiveram tempo para lembrar alguns aspectos do vídeo de Gérard e da tragédia que foi para ele aquele acidente em Porto Vitória, quando visitava Jeanne e Julie. Concordaram que ele era realmente um mestre na arte da informação e contra-informação. Um inimigo bem perigoso, muito hábil, por sorte do lado deles, agora um excepcional informante e orientador.


Na volta, decidiram visitar o escritório platino da Raloma para que David pudesse publicamente assumir o papel de Ramón. Ao ingressar no edifício, David, a exemplo de Ramón, respondia aos cumprimentos de boas-vindas com acenos e poucas palavras. Antes de subir para o escritório, o concierge, Pablito, entregou-lhe um pequeno envelope com um cartão em que havia um telefone e o nome Mariana. Pablito lhe disse que essa moça passara por lá, entre o meio-dia e às 13 horas. O escritório da companhia abrangia metade do sexto pavimento, dispondo de duas entradas: uma para os clientes e funcionários; outra, defronte do segundo elevàdor, dava acesso ao gabinete de Ramón, foi por ela que entraram, graças à duplicata da chave feita pela Organização, que tinha feito o mesmo para o apartamento. Lá dentro, depois de fazer um certo ruído para avisar que estava na sala, pelo interfone pediu que sua secretária, Marta, uma bonita senhora de 40 anos, típica descendente de espanhóis, com cabelos e olhos negros, avisasse a todos os funcionários de seu retorno.
– Marta, traga os últimos balanços e relatórios. Avise ao Rodrigo que quero vêlo daqui a pouco. Gostaria, também, que providenciasses dois cappuccinos e água. Obrigado.
Poucos minutos depois, uma sorridente Marta, ingressou na sala, sobraçando uma pasta de documentos e trazendo uma bandeja com os cafés e água, e enquanto os arrumava numa pequena mesa de reunião, alacremente ia falando.
– Senhor Ramón, que alegria revê-Io. Desta vez o senhor se superou em termos de sumiço. Já estávamos preocupados. (e olhando para Cassandra com um ar de admiração e surpresa) Aqui estão os balanços, os relatórios e este pacote que chegou há uma semana. Parece ser muito importante e confidencial, pois, está com um lacre de segurança. Como o senhor tinha me dito pelo telefone que tomasse muito cuidado com este pacote de seu amigo francês, guardei-o em casa. Como o senhor Diego ligou avisando da sua volta, fui em casa e o trouxe para o senhor.
– Marta, muito obrigado pela preocupação e por seu cuidado, só que estava em boas mãos e fazendo o que há muito precisava. Viajar e descobrir novos mercados. Marta, a Cassandra é minha noiva, gostaria que ela, quando vier por aqui, seja tratada da mesma forma que eu.
– Claro, senhor Ramón. Muito Prazer senhorita. Ah! como a senhorita é linda.
– Muito prazer Marta. Obrigada pelo elogio. Estou muito contente em lhe conhecer pessoalmente, pois, de ouvir falar, já a conheço há algum tempo.
– Marta, por favor, peça para que o Rodrigo venha até aqui. O café está muito bom. Diga ao Juan que ele continua com a mão certa, um verdadeiro mestre, que eu e Cassandra agradecemos pelos cafés. Marta, você agiu muito bem em guardar este pacote em sua casa. Obrigado.
Assim que a Marta saiu, David e Cassandra examinaram o pequeno pacote. Fora enviado de Mônaco, continha dois disquetes e uma carta de Gérard. Na carta, dizia que estava sobrevivendo às custas de muitas drogas e cirurgias – “creio estar com apenas 70% de mim mesmo”-, com poucas possibilidades de uma total recuperação. Nos disquetes estavam informes sobre as últimas operações comerciais e financeiras de Ramón e Paolo realizadas por ele via Internet e telefone. Como sabia que a carta só seria lida por ele, David, no escritório, era preciso que ao conversar com Rodrigo evitasse qualquer assunto comercial até tomar conhecimento do que havia nos disquetes. E que não ficasse nervoso ou preocupado com nada, pois, assim como a Organização os mantinha sob vigilância, ele, Gérard, também adotara algumas medidas para a proteção deles. Medidas que tomariam conhecimento pelos disquetes. No momento, o melhor era só conversar sobre amenidades com o Rodrigo e outros. Mal acabaram de ler a carta, David pegou os disquetes e entregando-os para Cassandra, pediu que ela fosse vê-Ios no apartamento, contactar a Organização, dizer o que estava acontecendo e pedir orientação, e que antes de ir ao Orleans passaria por lá.
Logo que Cassandra saiu, um sorridente e alegre Rodrigo entrou no gabinete. Era tão alto e magro quanto Ramón, cabelos e olhos negros, parecia estar em excelente forma física para os seus cinqüenta anos. Vestia um terno cinza-escuro, risca de giz, o que lhe dava a dúplice aparência de um rico executivo e de alguém com uma crueldade escondida. Uma sensação criada por seu modo felino de andar e olhar, como se a espreita da presa e esperando o melhor momento para atacar. O seu riso, no entanto, parecia realmente franco e sincero. Depois dos cumprimentos, denotativos de certa familiaridade entre os dois, ao invés de falar sobre os negócios da companhia, Rodrigo preferiu comentar que ele, Ramón, estava com excelente aspecto e que havia muitas novidades merecedoras de seu conhecimento. Novidades que contaria logo mais no Orleans, pois, os outros poderiam acrescentar os detalhes necessários para que ele, Ramón, fIZesse a avaliação, embora, na opinião dele, “tudo estava correndo melhor do que tinham planejado e sonhado. Vamos ganhar tanto dinheiro que será impossível alguém se colocar contra a gente. Você ficará surpreso”. Depois de comentar o quão bem Ramón aparentava estar e de parabenizá-Io pela noiva, “Diego me contou que ela é lindíssima”, despediu-se dizendo ter que sair para providenciar mais uma remessa de vinhos para os novos clientes arranjados por Ramón.
DavidlRamón ainda ficou mais um pouco lendo os relatórios da companhia, depois, saiu para cumprimentar a todos os empregados e, a exemplo de Ramón, parou na pequena copa/cozinha, bebeu mais um cappuccino e elogiou a qualidade do café feito por Juan. Sentiu que todos o consideravam como sendo o Ramón. Uma situação bem irônica, ele era a falsificação de alguém que realmente não existia. Gostou de ter sido aprovado pelos funcionários e mais grato ficou pelo fato de Ramón sempre ter sido um patrão generoso e gentil, pois, para ele era mais fácil ser assim, que era o seu modo pessoal de agir e ser. Depois de se despedir de todos, calma e firmemente, preferiu seguir pela Viamonte até a Esmeralda e ir direto para o apartamento. Ia testar a entrada alternativa e verificar quais as vantagens que ela dava. Ficou surpreso e contente ao descobrir que a entrada/saída alternativa ficava numa galeria, portanto com ampla segurança para entrar e sair sem levantar nenhuma suspeita. Cassandra, que não o esperava chegar por aquele caminho, levou um grande susto quando o viu descendo a escada do apartamento. David, rindo muito, pediu desculpas e prometeu que passaria a avisá-Ia quando tivesse que usar aquele caminho, “mas, é muito bom para a gente entrar e sair sem que ninguém note algo”.
Ela foi logo contando que os disquetes continham todas as informações necessárias para que ele tocasse a Raloma e a livraria/antiquário Giordano Bruno com conhecimento e sucesso. Em termos fmanceiros, já com a retirada que Gérard fez para Jeanne, Julie, Claire e Belen-tigui, o restante orçava em quinze milhões de dólares, mais as propriedades, exceptuando-se as de Mônac~, Argel e Porto Vitória. Havia ainda uma série de recomendações sobre com tratar com os produtores de vinho de Mendoza. E que já tinha ligado para o telefone indicado por Gérard. Era de uma agência especializada em alugar carros e depois que disse o nome de Gérard, foi avisada que dentro de uma hora, tanto o carro especificado, como o chofer indicado, estariam à disposição. O que deveria acontecer logo em breve. O outro telefone que Gérard sugeria, por questão de horário, só poderia ser tentado amanhã, entre as 10 e 13 horas. Disse que o pessoal da Organização também ficou espantado com a “ressurreição” do franco-argelino e que iriam voltar a monitorá-Io pessoalmente, bem como aumentar as medidas de segurança sobre eles dois. Ainda estavam conversando quando o interfone tocou e alguém chamado Guto, disse ser o chofer enviado por Gérard ~ que trazia uma encomenda.
Guto, embora desse a sensação de força e muito vigor, era bem magro, cerca de 1,70 e uns cinqüenta anos, ao entregar dois vídeos, que eram a encomenda, disse que era o responsável pela proteção dos dois enquanto estivessem na América do Sul, por ordens do Gérard, e que o carro também fazia parte do esquema. Além disso, sempre haveria duas “sombras” a lhes acompanhar. Explicou que nos vídeos saberiam mais a respeito das medidas de segurança tomadas por Gérard, que iria deixar o carro numa garagem ali perto e entregando um minúsculo telefone celular para cada um, “para ser usado como meio de comunicação entre eles, comigo e com as suas “sombras”. É um telefone bem especial, pois, está programado para receber apenas as ligações das pessoas registradas. Além disso, pode ser usado como gravador à distância. É só ligar e deixar funcionando. É preciso que tomem muito cuidado com eles, pois, eles podem muito bem salvá-Ios de poucas e boas”. De uma coisa Cassandra e David ficaram certos, o Guto era rápido, de poucas palavras e um provável europeu, ainda que falasse muito bem o porteño. O sotaque, mesmo pequeno, denotava-o como um mediterrâneo. David achou melhor que eles estudassem tudo mais tarde, depois que voltasse da reunião no Orleans. Uma reunião que ele considerava ser fundamental para o sucesso de sua vida como Ramón.

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Konzern -VII –

Durante o longo vôo entre Sacavém e Ezeiza, com escala em Recife e Rio de Janeiro, momentos em que sentiu a profundidade de sua nova vida, pois, segundo o passaporte ele era Ramóm Lorenzo de Martínez, preferiu recordar aquelas quase longínquas horas em Lisboa. Ao seu lado, Cassandra era a própria imagem da serenidade e do ‘bem-estar íntimo, dormia com a cabeça repousada em seu ombro. Quando acordava, seja para fazer alguma refeição ou beber algo, sempre dava um jeito de beijá-Io levemente no rosto e nos lábios. Nos poucos instantes em que conversou, já só em castellano, falava de coisas comuns, compras, limpeza da casa e outras trivialidades de uma pessoa normal. Era uma autêntica dona-de-casa voltando para a sua vida cotidiana. David só ouvia e concordava.
Àquela noite em Lisboa, depois de cearem em “O Nobre” e se deliciado com os fadistas da “Adega do Machado”, fazia parte daquilo que ele sempre pressentiu como uma entrega emocional e física entre um homem e uma mulher. Foi o fecho de um encantamento, frágil como a porcelana e forte como diamante. Tudo era mágico, cheio de novas sensações físicas e emocionais. Uma viagem do máximo ao mínimo, num vórtice sensual que entontecia. A emoção de felicidade, a alegria e a plenitude sentida eram tão grandes que chegava a doer. Uma dor que nem era uma dor real. Era o prazer em sua dimensão integradora, pois, nesses átimos em que deixava de existir, sentia que ele e Cassandra eram um só corpo, uma só alma. Até agora, no avião que os levava para um possível perigo, as sensações sentidas por ele eram tão fortes que já se considerava realizado e capaz de tudo. Se heroísmo era aquilo, David era o próprio Galahad, pelos menos era o que sentia naqueles momentos.
Nas escalas em território brasileiro, principalmente quando tiveram que aguardar o fim de um problema mecânico no Rio de Janeiro, foi que David teve a clareza do inusitado de sua nova vida como argentino. Um argentino rico e com bastante prestígio, pois, ele e Cassandra mereceram um tratamento vip personalizado por parte dos funcionários da companhia aérea. Àquelas duas horas passadas no Aeroporto do Galeão foram um suplício para David que, embora sentindo uma imensa vontade de falar com seus filhos e pais, teve que ficar só no desejo não realizado. Afinal de contas ele era Ramón Lorenzo de Martínez, um rico comerciante argentino, acompanhado de sua namorada, voltando ao seu país.
O receio de encontrar algum conhecido de Ramón não listado pela Organização o atormentava, pois, ainda que já estivesse falando com o mais puro sotaque mendocino mesclado com o porteíio, temia incorrer em um daqueles pequenos deslizes que destroem qualquer coisa, como perguntar pela saúde da mulher e o interlocutor ser solteiro. A solução para atenuar a tensão de sua estréia como um agente duplo foi dedicar toda a sua atenção aos relatórios sobre as atividades comerciais de Ramón e de seus clientes, que foram sustentadas pela Organização por meio da Internet. Junto com esses relatórios, balanços e extratos bancários havia um detalhado dossiê sobre os empregados da Raloma Export-Import, que era a empresa de Ramón. Aliás, como estavam viajando na primeira classe, portanto podendo gozar certa privacidade, Cassandra e ele viram e reviram tudo aquilo, de tal maneira que de longe seria capaz de reconhecer todos os funcionários da Raloma em Buenos Aires ou Mendoza. Nada podia ficar ao sabor do acaso. Era melhor esperar qualquer coisa.


Tanto David, quanto Cassandra, à seu modo bem particular, ficaram emocionados quando ouviram os avisos de que logo pousariam em Buenos Aires, com bom tempo e uma temperatura de 15 graus Celsius. Em Ezeiza, por precaução ou hábito adquirido quando visitava Buenos Aires nos tempos em que era ele mesmo, David preferiu os serviços de um micro-ônibus que coincidentemente tem a Avenida Santa Fé, quase na Plaza San Martin, o ponto terminal. A coincidência era a extrema proximidade com o apartamento de Ramón. O primeiro teste aconteceu quando estavam entrando no prédio. Um bem vestido portenho, cerca de quarenta anos, alegre correu para eles. Era um velho conhecido do Ramón, que sempre se encontravam num pequeno bistrot, o Orleans, esquina de San Martin e Córdoba, nos fins-de-tarde para conversar e beber vinho. Era um grupo bem eclético e de tendências liberais. Chama-se Diego Moroni e ficou encantado com a beleza da Cassandra, a quem se desculpou por estar quase que a exigir a presença do Ramón no Orleans logo à noite. Para o David/Ramón foi um excelente teste, em que foi aprovado com louvor.
No apartamento, que a ambos encantou pelo bom gosto e requinte, depois de uma “varredura” para descobrir possíveis escutas e de entrarem em contato com a Organização para saber das últimas informações sobre Ramón, Paolo e Gérard, comentando sobre o encontro com o Diego Moroni, Cassandra afirmou que ele foi extremamente natural e com as normais reações de alguém que revê pessoas conhecidas após algum tempo de sumiço. David, rindo bastante, disse que conhecia o tal Orleans e o porquê das reuniões serem lá. “É aquele bar na esquina da San Martin e Córdoba, embaixo do hotel Le Monde. É um bar freqüentado por quem deseja a eventual companhia feminina. Sempre que vinha por aqui, como achava o bar bem bonito e as jovens também, passava por lá todas as noites. Será que alguma vez eu fui confundido com o Ramón ?”. David, contou para ela que aquele grupo era composto por banqueiros, economistas, políticos, jornalistas e que o citado Rodrigo era o gerente-geral da Raloma. O resultado da “varredura” e do contato com a Organização foi satisfatório, pois, não havia “escuta” e tudo corria bem, sem que ninguém estivesse achando estranha a sua ausência.
Estavam arrumando as roupas, remexendo nos armários, gavetas e guardaroupas, quando o interfone tocou. David foi atender. Era o administrador do prédio informando que tinha muita correspondência guardada para o Ramón. David agradeceu a gentileza e disse que desceria logo para apanhar o que havia. Algo que não foi preciso, pois, o administrador, parte por curiosidade, parte por zelo, fez questão de entregar a correspondência pessoalmente e para se apresentar a ele, já que há apenas seis meses estava naquela função.
O administrador, Pablo Ruiz, morava no apartamento logo abaixo ao dele, fez questão de comunicar que todas as vezes que o pessoal da limpeza ia fazer a faxina no apartamento, tanto ele, como D. Antonio, o antigo administrador, faziam questão de mandar alguém para acompanhar a limpeza. Depois dos agradecimentos e de uma protocolar conversa com ele, David e Cassandra correram para saber o que continham aquelas cartas e um pacote. Leram o que havia de correspondência e, para o espanto deles dois, um pacote remetido por Paolo, enviado de Boston e postado em março de 1996. Dentro dele havia um envelope e uma fita de vídeo. No envelope havia três cupons, o número de um cofre da agência central do Banco de Ia Nación, um CD-Rom e um bilhete com os seguintes dizeres: “Para os olhos do meu sucessor”. David e Cassandra ficaram atônitos.


Enquanto David tentava botar em ordem as idéias que lhe vinham à mente, Cassandra, mais tarimbada, disse ser melhor que vissem o vídeo antes de adotar qualquer atitude. David concordou e como ainda era manhã, cerca de 11 horas, tinham bastante tempo para agir, caso a situação estivesse fora do controle deles e da Organização. Antes, porém, de verem o vídeo, colocaram todos os seus documentos, legais e ilegais, dinheiro, jóias, cheques e cartões de crédito, juntamente com tudo aquilo que dizia respeito ao RamónlPaolo/Gérard, numa valise. Limparam todos os móveis, roupas, calçados e objetos que haviam tocado ou manuseado com o cuidado necessário para desaparecerem as suas impressões digitais e fios de cabelo. Era uma precaução para a eventualidade de terem que sair às pressas do apartamento, pois, saindo apenas com uma valise ninguém perceberia que estavam fugindo do lugar. Desse modo, tão logo terminaram a faxina de segurança, rindo muito pelo fato de estarem enluvados, num apartamento com calefação, resolveram ver o vídeo.
Já mais calmos e se sentindo mais seguros, junto com um bom Norton tinto, sentaram-se para assistir aquilo que poderia ser o fim daquela aventura. As primeiras cenas foram de tirar o fôlego. Eram tomadas da conversa havida entre Cassandra e David lá em Barcelona, naquele café. Logo em seguida, sentado em uma cadeira de rodas, daquelas que são usadas por tetraplégicos, surgiu um alquebrado e sorridente Gérard dizendo que não havia nenhuma necessidade para receio algum, pois, o que ele sabia era de seu exclusivo e único conhecimento. Além disso, o quadro clínico dele indicava que não sobreviveria além de mais dois meses, que estava reassumindo a sua identidade real e voltando para Mônaco, onde pretendia morrer. Ia deixar as duas identidades restantes, Paolo e Ramón para o uso da Organização, juntamente com todos os recursos financeiros que tinha amealhado, menos uma parte que ficaria como herança para sua tia, Claire, Belen-tigui e uma filha, Jeanne, que morava com a mãe nas Ilhas Seychelles, em Porto Vitória.
Gérard contou que descobriu a vigilância lá em Boston, depois que abriram o cofre da adega. Esse cofre fora feito especialmente para ele por um grande especialista em segurança bancária, um suiço que conhecera no Senegal. Todas as vezes que era aberto alterava automaticamente o último número do segredo, assim, quando abriram o cofre e ele tentou abrir com o número que havia memorizado e nada conseguiu, soube que ele tinha sido aberto. Como tudo estava no lugar certo e o cofre não apresentava nenhum sinal de arrombamento, além de continuar vivo, logo concluiu que os autores daquilo pretendiam apenas saber o que continha e mantê-Io sob controle. A descoberta da interface demorou um pouco, mas, ao saber de sua existência, resolveu usar o feitiço contra o feiticeiro. Assim, instalou um sistema que lhe dava retorno e acesso ao servidor central da interface, o que lhe possibilitou conhecer a Organização e seus objetivos. Como os interesses eram comuns, depois de alguns meses de controle e análises dos dados obtidos pela Organização sobre o Konzern, fechou o sistema, pois, o importante ele já sabia, que era existir uma Organização transnacional voltada para o combate ao ” cartel” .
Com referência às tomadas de Barcelona, Gérard explicou que o acaso dessa vez o tinha premiado em Buenos Aires, no mês de julho de 1991, quando alguns conhecidos seus disseram que o tinham visto quase todas as noites no Orleans. Como acabara de chegar à cidade, curioso com as incisivas afirmações deles, decidiu ir ao bar para saber quem era tão parecido com ele que até enganara o seu gerente-geral. De início ficou extremamente pasmo com a semelhança, uma autêntica duplicata dele, depois, imaginou que poderia ser muito vantajoso ter alguém igual a ele. O resto foi fácil, pegou uma foto sua para passaporte, um cheque de uns poucos milhares de dólares e com uma carta contratou os serviços de uma agência de detetives particulares para seguir o sósia. Dois meses depois sabia de tudo a respeito do David. Restava uma outra providência, monitorar as atividades do David, o que foi feito com a ajuda dos detetives privados brasileiros, contratados por tempo indeterminado e que trimestralmente enviavam relatório para a sua empresa em Mônaco. Foi desse modo que tomou conhecimento da viagem de David à Europa.


As cenas da rambla foram feitas por um fotógrafo amigo, especializado em filmes e fotografias para divórcios, um ex-mercenário, que também ficou com a responsabilidade de seguí-Io. No que se refere à Cassandra, também foi seguida até seu retorno aos Estados Unidos. Graças à vigilância mantida sobre David, tanto no Brasil, quanto na Áustria, ele conseguiu montar o quebra-cabeça e presumir que a Organização acreditava que estava morto, deste modo, como não havia outra alternativa, a melhor solução era fazer o David passar por ele. Na opinião dele, Gérard e de alguns de seus auxiliares europeus, David estava perfeito, principalmente no domínio das entonações e inflexões vocais que ele, Gérard, tinha. Ninguém notaria a diferença, com a exceção de sua filha e Julie, tanto que aconselhava uma constante vigilância preventiva sobre as duas, de modo que nunca houvesse a chance de se encontrarem.
Como não sabia qual seria o primeiro movimento de David, preferiu enviar o que ainda faltava de informações pessoais e do que sabia sobre o “cartel” na forma de CDRom. Um para Buenos Aires, outro ficaria na casa lá em Boston, dentro do cofre. Os cupons eram o contra-recibo necessário para o acesso aos cofres alugados na Suiça, que continham microfilmes de documentos e dossiês a respeito de algumas pessoas que ele acreditava serem os chefões do Konzern. No cofre do Banco de La Nación encontrariam quase tudo o que se referia ao “cartel”, de suas operações e responsáveis na América Latina. Pediu para tomar muito cuidado com o Rodrigo e um jornalista, Ricardo Puente, e que tudo fizessem para destruir o “cartel”, vingando os pais dele e muitos outros pais que sabia terem sofrido o mesmo destino. Por último, ensinou que na biblioteca do apartamento, atrás do Leviathan de John Hobbes, havia um botão que abria um cofre escondido, onde encontrariam duplicatas da chave do Lear Jet e do brevet, as chaves do hangar e os segredos do cofre que ficava em Mendoza, e as chaves que abriam os portões do prédio da calle Esmeralda lá embaixo e no terraço.
Antes de se despedir, quando desejou muita sorte para o David e pediu que protegessem Jeanne e Julie, disse que tinha uma informante ligada ao Puente, uma jornalistafree-lancer, Mariana Robles. Essa jornalista gozava de sua total confiança e há muito o ajudava na coleta de informações sobre algumas personalidades argentinas. Ela porque desejava saber o que acontecera com o irmão, desaparecido desde a “noite dos lápis” , uma operação dos militares argentinos contra os estudantes secundários. Mariana acreditava que Puente e alguns outros sabiam de fatos ligados ao que aconteceu naquele período. Para facilitar o contato entre os dois, Mariana fora contratada como analista econômica da Raloma por “indicação” de Diego Moroni, um rico fazendeiro da província de Buenos Aires, que tinha um fraco por jornalistas bonitas e com aparência de fúteis. Os dossiês sobre Mariana e Diego estavam no cofre da biblioteca.

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Konzern – VI –

coloniauruguay

Foi em Colônia que Cassandra teve o primeiro encontro com a Organização. Quando se preparava para adquirir a passagem de retorno à capital argentina, pouco antes de apanhar o dinheiro, ouviu: “Não compre nada. Não olhe para trás. Vá até o estacionamento dos táxis e pegue o quem tem um chofer com o paletó no braço. Vá logo se quiser viver”. Espantada e com medo, Cassandra sem pensar nada, fez o que aquela voz tinha ordenado. Foi ao estacionamento e entrou no táxi indicado, que rapidamente tomou a direção de Maldonado. Só depois de alguns minutos é que ela se lembrou de perguntar a razão de tudo aquilo. O chofer disse que tudo estava bem, que não precisava ter medo, pois, só queriam ajudá-Ia. Ao chegarem em Maldonado, pararam em um luxuoso restaurante. O chofer disse que a estavam esperando. “É um casal de meia idade, sentado à esquerda da porta de entrada, na terceira mesa. Eles lhe explicarão tudo”. Cassandra não teve nenhum problema em achar o casal, que calmamente parecia estar apenas esperando por alguém. Foi recebida com alegria. Uma alegria que ela sentiu ser sincera e que a tranqüilizou, pois, ainda que estivesse seguindo à risca tudo o que lhe diziam, nos poucos instantes em que raciocinou soube que era algo ligado ao suicídio de Rodolfo, mas, sempre havia a dúvida.
– Cassandra, como vai ? Fez boa viagem ? Débora já estava preocupada com o seu atraso. Deve ter sido o tempo, que nesta época do ano é bem instável.
– Querida, que bom que chegou. Espero que esteja descansada, pois, hoje mesmo teremos que viajar. Enrico, faça alguma coisa, peça vinho para nós. Cassandra deve estar com fome e sede.
– É verdade, estou com bastante sede e fome. Mas…
– Querida, não se preocupe com nada. Daqui a pouco nós vamos sair e você saberá de tudo o que precisa saber. Agora, vamos aproveitar o vinho e esta tortilla montada.            
tortillamontada
Enquanto comiam, naquele faz-de-conta familiar, Cassandra observava os seus anfitriões. Enrico devia estar entre os 50 e 55 anos, já Débora aparentava uns 40 anos de idade. Ambos estavam vestidos com extrema elegância e cuidadosa simplicidade. Quem os olhasse, mesmo com muita atenção, notaria que eram pessoas habituadas àquele ambiente. Enrico era bem magro, alto, cabelos grisalhos curtos e um permanente sorriso nos lábios. Débora, recordava uma modelo, tal a esbelteza e os traços finos de seu rosto. Faziam um casal muito atraente e, por incrível que possa parecer, tão comuns que seria muito difícil alguém se lembrar de como eram fisicamente.
O gentil tratamento e o carinho que transmitiam foram os remédios para aliviar a tensão e o medo que ela sentia. Aos poucos, como uma conversa bem natural, foram lhe contando o que iriam fazer depois que saíssem do restaurante. Ela seria entregue para um outro membro da Organização, que cuidaria de sua volta para Buenos Aires, de sua segurança e das informações necessária à sua proteção. O fato concreto, entretanto, era de que ela estava correndo um grave risco de vida, juntamente com sua irmã e mãe. Os responsáveis pela morte de Rodolfo há muito os vigiavam, esperando recuperar possíveis documentos deixados por ele. Documentos e informações como aqueles que estavam em seu poder.                                                                           aeroparque
Durante a sua viagem de volta, no pequeno e veloz avião, soube da existência do Konzern, dos seus objetivos e das medidas que ela teria que adotar para a própria segurança e de sua pequena família. Deram-lhe uma semana para cuidar de tudo. Até lá estaria sob a vigilância da Organização, que teria sempre alguém perto dela. As instruções eram bem simples: andar sempre em grupo, não sair de noite e caso algo estranho acontecesse, fosse o que fosse, teria que telefonar para um determinado número e deixar tocar três vezes, interromper e tocar mais três vezes, que imediatamente viriam pessoas para lhe dar proteção.
Antes de tudo começar, quatro treinamentos foram feitos e para a surpresa dela, em menos de cinco minutos os seus guarda-costas se materializaram em sua porta. A parte mais difícil foi convencer Silvina dos problemas sem poder explicar quais eram. A solução veio por intermédio de Consuelo, que sugeriu fugirem para o Canadá, sob o pretexto de visitar Rafael. Com a ajuda da Organização, que lhes forneceu dinheiro e novos documentos, Silvina e Consuelo viajaram para Montreal para irem ao encontro de Rafael. Cassandra, embora tenha viajado junto com elas, ficou em Nova Y ork. Lá em Nova York, já mais familiarizada com os métodos da Organização, Cassandra aprendeu o que faltava saber sobre o Konzern e como usar todas as técnicas e conhecimentos para combatê-lo.                             newyork
Graças à proximidade com o Canadá, Cassandra pôde visitar a sua mãe e irmãos. Rafael e Consuelo tomaram conhecimento de tudo, dos motivos da morte do pai, da ação do Konzern e de sua decisão de ingressar na Organização. Embora ambos tenham demonstrado grande vontade em ajudá-Ia, Cassandra lhes afirmou que não corria nenhum risco e que o melhor era ficarem por lá, cuidando da mãe e de suas próprias vidas. Era a primavera de 1988.  
Cassandra, já de volta à Nova York, foi encaminhada para o setor de contrainformação por sua extrema habilidade em aprender línguas e por ter uma aparência que lhe dava livre trânsito nos principais centros operacionais do mundo. Um dia, após uma nova checagem nos dados a respeito de movimentações financeiras, graças à genialidade de um hacker que lhes possibilitou o acesso aos computadores da Swift (Society for Worldwide lnterbank Financial Telecommunications), notou que três pessoas diferentes movimentavam recursos entre si e uma só conta parecia ser o centro das operações. Como essa conta era de um tradicional banco monegasco, pesquisou e descobriu que há seis anos essas operações eram realizadas, com uma característica interessante, eram sempre em cima de outras operações especulativas de grande porte.       bancomonaco
Levou esse fato ao conhecimento de seus superiores que decidiram enviá-la a Mônaco para tentar descobrir o dono da conta. Dois meses depois, com a “ajuda” bem desinteressada – US$ 20,000 – de um graduado funcionário desse banco, conseguiu o nome de Gérard Perin, o seu endereço e tomou conhecimento da existência de Belen-tigui. Soube que Gérard era um exportadorimportador franco-argelino, que viajava muito, sem amizades conhecidas, de sua família, do acidente que o deixara órfão e de sua tia Claire, ainda morando em Argel.
Um dia, disfarçada de funcionária sanitária da administração de Monte Carlo, visitou a casa de Gérard tentando obter mais informações, o resultado foi uma fotografia roubada e a descoberta de que Belen-tigui era mande. A partir da foto de Gérard com Claire e da naturalidade de Belen-tigui foi que Cassandra pôde descobrir sobre a sua vida de mercenário na África. Como ninguém sabia quando Gérard viria, Cassandra deixou um grupo vigiando a sua casa. Um cuidado recompensado em menos de dois meses com o aparecimento do franco-argelino, quando foi filmado e fotografado em várias situações. Algo só possível porque a vigília era feita por quinze pessoas diferentes e em trechos específicos do condado.
Tão logo soube que Gérard ia viajar, colocou mais quinze pessoas para descobrir para onde ele iria. Assim que foi informada de que era para a Argentina, viajou antes e deixou gente esperando por ele lá em Ezeiza e no Aeroparque de Palermo. Dois depois de sua chegada em Buenos Aires, foi avisada que Gérard tinha chegado e qual era o seu endereço. Não ficou surpresa quando soube que já não era mais o Gérard, mas, sim, o Ramon Martínez, um argentino de Mendoza e de excelente relacionamento com os mais poderosos do país.                                                                       mendozadowntown 

Seguindo as instruções recebidas – “a paciência e a constância é que contam quando se quer descobrir alguma coisa”- , ela e seus amigos foram lentamente desvendando a história do Ramon. Faltava saber porque todo aquele trabalho de criar uma outra personalidade. Quando ele tomou o avião para o México, onde ia analisar alguns livros antigos, dois companheiros da Cassandra o acompanharam. Lá na Cidade do México, outros o estavam esperando e só assim é que ela pôde esperá-Io em Nova Y ork. Ficou impressionada com a calma e a segurança que ele demonstrava, além da mudança no modo de se vestir e agir.  Era um outro homem. Se não fosse pelo tumultuado tráfego, ela o teria perdido de vista, tal a rapidez com que se deslocou do aeroporto para a estação de trem. Ele ia para Boston. Como só estavam ela e mais um companheiro, ela decidiu acompanhá-Io no trem, enquanto o outro tentava montar a vigília lá em Boston. Chegando em Boston, já com a ajuda dos outros, foi fácil saber onde morava e o que fazia. No entanto, por mais que tentasse tirá-la da cabeça, a pergunta conyinuava viva: – por que três nomes e três vidas?
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No hotel, sem saber o que fazer com aquela situação, pois Cassandra tinha se registrado no mesmo apartamento dele, David lembrou-se que ainda era cedo, cerca de onze horas da noite. Assim, tão logo a jovem acabou de arrumar as suas coisas no guarda-roupa e cômoda, David, com uma casualidade que não sentia, propôs que fossem gozar um pouco das delícias noturnas da cidade de Ulisses. Cassandra, muito alegre, disse que sim, mas antes precisava de um chuveiro e trocar de roupa. Unindo a palavra aos gestos, Cassandra, talvez de propósito, começou a se despir. David, encabulado e ao mesmo tempo louco para vê-Ia, rápido foi ao frigo-bar e pegou uma pequena garrafa de vinho tinto, o Periquita.
Só quando já estava lhe oferecendo um copo do capitoso vinho é que se lembrou da acepção popular do nome do vinho no norte do Brasil. Não resistiu e rindo conseguiu ficar à vontade com ela, que sem a menor vergonha, mostrava o porquê da predileção do corpo feminino como exemplo de obra de arte. Curvas, montes, vales antecipando profundezas, harmonicamente distribuídos e pulsantes, foram as imagens que David teve enquanto a observava andando pelo apartamento. Bebeu o vinho com calma e torcendo para manter o fair-play, pois, embora estivesse excitado, sabia que qualquer aproximação física teria que partir dela, até então agindo como se ficar nua na frente dele fosse a coisa mais comum da vida dela.                                          solarvinhodoporto
Mais tarde, no Solar do Vinho do Porto, entre um cálice e outro, degustando umas azeitonas que pareciam pequenas bolas negras, David lhe perguntou se a idéia dela passar por sua namorada era da Organização ou dela. Cassandra riu e lhe disse que como tinha autonomia suficiente para decidir e como tinham que ir à Argentina, o melhor seria daquele modo. Lá ele seria o Ramon e mesmo familiarizado com a “vida” do mendocino, ela seria muito útil para lhe explicar sobre os detalhes da operação. Não podia haver nenhum erro, pois, seria a primeira vez que a Organização tentaria, através de uma infiltração, desorientar algumas importantes atividades do Konzern. Além disso, ela pretendia, com a ajuda dele, destruir o grupo que controlava a Nutrifomento. Sozinha ela não tinha nenhuma chance de aproximação, já com o Ramon ao seu lado, tudo ficava mais fácil e era bom que ele se lembrasse que ela era argentina, fora ser a nova responsável da Organização pela América do Sul.
– David. David. Não seja inconveniente e nem tente me deixar embaraçada. Por que você está preocupado se eu quis ou não esse tipo de arranjo ? Com mais um pouco você acabará me perguntando se conheci o Gérard. Se fui sua namorada, amante, etc.. A resposta é uma só – não o conheci pessoalmente.
– É, Cassandra, você tem razão. Eu ia mesmo perguntar se você tinha conhecido o Gérard, pois, quando me contou sobre ele, pode ser até que eu esteja errado, mas, senti uma ponta de admiração por ele.
– E não era para ter ? Olha. Sozinho, contando apenas com sua experiência e alguns conhecidos, ele avançou muito no conhecimento do Konzern. Não cheguei a conhecê-Io porque não quis. Embora eu o respeitasse como um excelente quadro de informação e contra-informação, além de suas qualidades militares e de financista, lá dentro dele havia alguma coisa que me incomodava muito. Ele parecia uma máquina, sem emoções e sem alma. Não era o tipo de homem para mim.
– Como foi que obtiveram todas aquelas informações sobre ele ? Alguém se aproximou intimamente dele?
– Não houve dificuldade alguma. Como ele tinha criado uma cobertura à prova de bisbilhotices comuns, com legítimos documentos e certidões da Itália, não adotava nenhum tipo particular de segurança. Aliás, a legalidade de sua cobertura é que nos ajudou, pois, tanto em sua casa, quanto na Giordano Bruno, semanalmente era feita uma faxina por uma empresa. Ao substituirmos os faxineiros tivemos fácil acesso. Na casa e na livraria nada encontramos, fora o que é normal de se encontrar nesses lugares, o único fato estranho era existir um poderoso computador em sua casa, porém sem nenhum disquete ou CD-Rom. Graças a um nosso especialista, ex-arrombador de cofres, descobrimos um cofre na adega da casa. O cofre era tão sofisticado que levamos quase quatro dias para abrí-Io. Lá dentro estava tudo aquilo que você já tomou conhecimento, inclusive o vídeo.
– Que planos fizeram para ele?
– Até analisarmos e investigarmos tudo, nada fizemos. Mais tarde, quando tivemos a firme convicção de que sua luta contra o cartel era real, decidimos apoiá-Io.
– Como apoiá-lo se vocês, num certo sentido, eram clandestinos como ele?
– O plano dele, segundo nossas análises, dependia de muito dinheiro. Só com muito dinheiro é que conseguiria se aproximar dos chefões do cartel. Aí, como temos influência e bastante cobertura financeira, indiretamente dávamos um jeito de fornecer informes confidenciais e aval para empréstimos bancários.
– Quer dizer que vocês sabiam de tudo o que se passava com ele? então por que não evitaram a sua morte?
– Nós sabíamos apenas o que ele tratava via computador. O nosso hacker tinha montado um sistema de interface entre o computador dele e um nosso computador, que estava permanentemente ligado ao dele. Sabíamos de suas contas, de suas três vidas, porém nada a respeito do que pensava. Deste modo, a morte dele foi uma grande surpresa para nós.
– Foi acidental ou não?
– Ninguém sabe. Se não foi acidente, estaremos indo diretamente para a caverna do tigre com essa nossa viagem para Buenos Aires. É um risco que não gostaria que houvesse. É um problema bem desagradável e que não deveria existir.
David bem que tentou continuar a conversa, principalmente porque sentiu que o perigo era maior do que ele pensava. Foi em vão. Cassandra, rindo lhe disse que teriam muito tempo junto para discutir sobre aquilo. “É melhor aproveitarmos esta noite, quando somos nós mesmos”. David, volta e meia, esquecido daquela estranha realidade, deixava-se envolver pela alegria e beleza de Cassandra. Embevecido, quase tolo, olhava-a e via uma belíssima maja, num vestido de seda azul, decotado, com um colar de rubis realçando outras duas jóias.  cordilleradelosandes
Cassandra, com as maçãs do rosto afogueadas, começou a lhe falar de que um dos motivos para ela ir com ele para a Argentina, talvez mais do que a sua sede de vingança, era a vontade de passar uns tempos nos Andes. “David, desde bem pequena que sonho com os Andes e como fiquei quase quinze anos no Brasil, nas férias, ou ia para Buenos Aires, ou para o nordeste brasileiro. Agora chegou a minha vez de efetivamente conhecer a Cordilheira”. David riu muito, quando ela, depois de uma breve pausa, retomou o mote dos Andes e sorridente lhe disse que era uma mulher muito sortuda, pois, não só iria para o lugar de seus sonhos, com toda a pompa e circunstância de uma “rica estanciera”, como era levada por um homem corajoso, inteligente e elegante. David, ainda que contente com aquela noite, estava preocupado com o futuro imediato, à volta ao hotel. Cassandra, a exemplo de todas as mulheres, soube o que o David pensava e temia, pousa a sua mão sobre a dele e fitando-o com olhos que tudo prometiam, sem nada falar, disse-Ihe que ela era mesmo a sua namorada.

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Konzern – V –

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A Organização
Agora, ali, tendo a sua recrutadora sentada à sua frente, David, depois de rememorar só o que considerava essencial e importante para o seu caso, fingindo-se de nonchalant, ficou a observá-la enquanto fazia a escolha do vinho. Teve que reconhecer a perfeição da escolha daquele vestido estampado de seda, que moldava e exibia, escondia e prometia. Cassandra, indecisa sobre qual vinho verde beberiam, mirava-o como que a pedir ajuda, com um ar de alegria tão grande que ele sentia ganas de abraçá-la e beijá-la. Para ele, se as coisas seguissem o rumo normal de qualquer encontro entre uma mulher e um homem, pelo menos naquele exato momento, tudo estaria bem. Só que não era nada disso. O encontro, ainda que aparentasse o que há pouco desejava, seria para decidir quais seriam os seus próximos passos, principalmente depois daquele longo treinamento e educação para ser outras pessoas. Às vezes chegava a rir das exigências de que a cada semana devia adotar uma das três personalidades. No último mês conseguia fazer as transições de Gérard para Ramón, de Ramón para Paolo e de Paolo para Gérard ou Ramón com tanta rapidez e segurança que até pensou estar ficando esquizofrênico.
– Muito bem, David. Você está com um excelente aspecto e parece estar em plena forma. Espero que esteja convicto do que aguardamos de você. Primeiro, porque não temos como mudar nada. Segundo, porque as coisas estão voando ao invés de caminhar.
– Estou bem, sim. Não podemos deixar estes assuntos para depois ? Afinal de contas, gostando ou não, você é a única pessoa que fala comigo sabendo realmente quem sou. Não podemos fingir um pouco que somos pessoas comuns e normais? Turistas em visita a Portugal?
– É uma boa idéia, até porque ficaremos juntos por um longo período e a minha cobertura será aparentar ser sua namorada. Então, vamos aproveitar estes momentos de calmaria.
David, ao ouvir aquelas palavras, ditas por uma Cassandra sorridente e mais linda do que o normal, sentiu-se quase sem fôlego. Pelo visto Deus existia e gostava muito dele.
– David, embora este vinho seja bom e os petiscos mais ainda, como do aeroporto fui para o hotel e de lá para cá, estou morrendo de fome. Assim, logo que terminarmos com este vinho, sugiro que a gente vá para aquele restaurante que fica aqui pertinho, “O Pereira”. Já me fizeram muitos elogios à sua cozinha, principalmente ao cozido à portuguesa e ao bacalhau à minhota que fazem. Aliás faz muito tempo que não como nada disso. Vamos lá ?

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– É claro que vamos, pois, como poderia recusar um pedido de quem é meu patrão ?
– Não é nada disso e você já sabe muito bem que temos a mesma importância. O máximo que sou é mais antiga. No resto, meu caro David, somos extremamente parecidos. É engraçado, pode até ser uma ilusão, mas, David, você parece diferente daquele David que seguí por todo o Rio de Janeiro e parte da Espanha. Ganhou mais segurança e parece mais triste.
– Ora Cassandra,você deve estar a querer brincar comigo ou ainda está a sofrer os efeitos da mudança de fusos. Como é possível ficar seguro, quando se é forçado a viver uma vida que não é a sua ? E ainda ficar alegre, gostaria que você me desse uma boa razão qualquer para que isso seja possível?                                                                                            atirarrevolver
– Um momento, você pensa que é o único a se sentir usado e manipulado? que só você sente isto ? Ora, David, eu sei que ainda não me desculpou pelo que fiz. Entretanto, a despeito do que você pensa, a minha escolha não foi fácil, porém, como já senti na pele a violência e o tipo de poder do Konzern, não tive outra alternativa. Constrangê-Io a aceitar era a única solução, pois, onde iríamos encontrar alguém idêntico ao Gérard ?
– Não é nada disso. Os vídeos e os documentos que você me forneceu, deram-me as informações e os motivos para também querer lutar contra eles. A questão é que ainda não me disseram quando volto a ser eu mesmo. Não, não precisa tentar responder, pois, tenho a mais absoluta certeza de que você nada sabe e eu não gostaria de ouvir nenhuma mentira sua. Nem mesmo uma piedosa mentira.
Cassandra nada disse, apenas, afetuosa e carinhosamente, colocou a sua mão sobre a de David, assim ficando por um bom tempo. Nenhuma palavra foi dita entre eles, que se entreolhavam envergonhados e surpresos com aquele tipo de explosão. Num certo sentido, tanto a Cassandra, quanto o David, sabiam ser aquela a primeira vez em que realmente se viam. David, incomodado com o seu comportamento, só sabia pensar que tinha feito uma grande bobagem. Uma bobagem que poderia modificar todo o planejamento de suas atividades. O melhor era pagar a conta, ir logo para o “O Pereira” e tentar fazer de conta que estavam se reencontrando.
David, embora fingindo uma descontração que não sentia, tentava adivinhar os pensamentos da jovem à sua frente, que continuava calada, com um sorriso meio tristonho. Por mais incrível que fosse para ele, David não queria que ela ficasse entristecida ou magoada, preferia aquele seu modo seguro e indiferente de tratá-Io. Ele também não conseguia atinar com as razões que o levaram àquele desabafo ressentido. Afinal de contas, na última vez em que se encontraram lá em Salzburg, ela havia lhe perguntado se gostaria de modificar alguma coisa no plano original, se não precisava de mais algum tempo para assimilar os papéis que iria desempenhar. E ele, envolvido pelo o que de aventura tudo aquilo significava, dissera que estava tudo bem e que estava pronto.        salzburg1                                                                                              
Era uma situação que nunca passara por sua cabeça, já sonhara estar com a Cassandra em mil e uma situações, em que era o senhor de todos os movimentos e dono de todas as certezas. A diferença entre os seus sonhos e aquele momento, mais do que a fantasia, estava naquilo que era a sua própria essência. Uma essência que em nada diferia do que todas as pessoas desejavam. Ser feliz, ter o reconhecimento e a sensação do dever cumprido, seja como uma pessoa produtiva, seja com um ser humano capaz de afeto e amor. David, ainda que um pouco escandalizado com os seus rompantes explosivos, lá no fundo estava satisfeito, pois, sabia que bem raras vezes poderia ser ele mesmo. O seu medo, talvez o único e real temor, residia na dificuldade que tinha em entender quem era e o que se passava com a Cassandra. Só sabia desejar que ela sentisse parte do que ele sentia. Não precisava nem ter a mesma força e sentido. Queria apenas que ela gostasse dele.
Enquanto caminhavam em direção ao restaurante indicado por Cassandra, que, por sinal, ficava bem perto daquele onde estavam, David, sem saber como interromper o constrangedor silêncio que os separava, apenas pensava e fazia comparações com outros acontecimentos já vividos por ele. O que estava sentindo era muito semelhante ao que sentira um dia, quando, depois de saber da morte acidental de duas primas, lembrou-se de que era o único sobrevivente daquele grupo de meninos e meninas, seus primos, que com ele tinham vivido os mágicos dias da infância e parte da adolescência. Sentiu-se perdendo a memória de sua própria existência. Ele era a única prova de tudo aquilo que tinha acontecido. Pedro Paulo, Pedro Aurélio, Clara, Maxmiliano, Haroldo e Corina, parceiros de seus jogos infantis, das primeiràs dúvidas e descobertas da puberdade já não podiam mais testemunhar e compartilhar aquele passado. Ficou muito triste ao descobrir que no plano individual, o tempo até que permanece quando há testemunhos de uma mesma vida, mas, quando não há com quem dividir as lembranças e só o futuro parece contar, o sentimento de solidão é só o que fica.
– David, que tal sentarmos ali naquela mesa dos fundos ? Não tem ninguém sentado perto.
– Você está zangado?
– Não. É que vez por outra fico pensando umas bobagens e acabo me envolvendo nesse tipo de pensar. Prometo que não vai mais acontecer e que já passou. Afinal de contas viemos aqui para provar do afamado cozido à portuguesa e degustar um bom vinho verde. Só no pensar em comer bem, o meu humor melhora logo.

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– É uma boa idéia o cozido. Vamos fazer assim: um cozido para nós dois e o bacalhau à minhota para finalizar. Que tal?
– Para mim está ótimo. Agora, que tal você ir me adiantando sobre o que irei fazer depois. E por que você tem que se passar por minha namorada ? É prêmio ou castigo?
-Não seja apressado, ainda temos muito tempo. (rindo) E sobre ser prêmio ou castigo, só o futuro dirá. Afinal de contas, não há nenhuma pressa.
O jantar decorreu em boa paz e descontraída alegria, tanto David, quanto Cassandra, tinham superado aquele embaraçoso momento de antes. Comeram e beberam com extrema satisfação, demonstrando que poderiam manter uma convivência bem amistosa, tal era a tranqüilidade e a segurança que sentiam um com o outro. Foi desse modo que David obteve as primeiras informações sobre quem era a Cassandra. Soube que ingressara na Organização há mais de oito anos, que estava com 32 anos de idade, solteira e argentina de nascimento, embora se considerasse um pouco brasileira, pois, viveu no Rio de Janeiro, dos 4 aos 18 anos. Seu pai fora alto funcionário de uma grande empresa argentina de alimentos e até voltar para Buenos Aires, logo após a Guerra das Malvinas, em setembro de 1982, jamais demonstrara qualquer tipo de envolvimento ou preferência política. Era o exemplo clássico do tecnocrata privado, indiferente e distante das questões políticas, embora às vezes ela sentisse que tudo aquilo não passava de fingimento.                                     malvinasargentinas
– Para mim, ainda que conhecesse bem o país e Buenos Aires, pois, todo ano costumava gozar as minhas férias por lá, não estava sendo muito fácil voltar a ser uma porteña. Ora porque já tinha me habituado ao modo carioca de ser. Ora porque ficava angustiada com aquele clima opressivo gerado pela derrota militar nas Malvinas, com o fim da ditadura e pelo avanço da crise econômica.
– Por quê então você continuou por lá ? não teria sido melhor retornar para o Rio de Janeiro, onde você já estava acostumada?
– É. O certo seria isso. Só que não foi possível, pois, como o meu único irmão estava com a sua vida completamente organizada no Canadá, ele não queria mais voltar para Buenos Aires. Você sabe como é. Mulher, filhos, emprego e respeito profissional, tudo o afastava, além das incertezas políticas que rondavam o país. Ele fugiu para lá quase no mesmo dia em que a Isabelita foi derrubada. Nessa época ele estava concluindo o curso de Jornalismo, Propaganda e Marketing e trabalhava para um grupo empresarial ligado ao Lorenzo Miguel, da CGT. Com o golpe militar de Jorge Videla, em março de 1976, Rafael teve que fugir e preferiu colocar milhares e milhares de quilômetros de distância entre ele e a nova ditadura. O resultado é que tive que continuar em Buenos Aires, juntamente com meus pais e uma irmã mais nova, a Consuelo.
– Como foi que você se envolveu com a Organização? O que a levou até ela?
– Tudo aconteceu de forma tão rápida que, quando fui pensar no que estava fazendo, já não tinha mais como recuar. Foi assim….Buenos Aires -
Cassandra contou que dois anos depois do retorno à cidade de Buenos Aires, já durante o governo AIfonsín, seu pai, que fazia parte da direção financeira da empresa, Nutrifomento Agropecuario S/A, um dia fez uma reunião com toda a familia e informou que seria dispensado pela firma por estar em desacordo com as fusões e alianças financeiro-comerciais propostas pelo novo grupo controlador da empresa. Contou que o melhor para eles, levando-se em conta o quadro econômico do país e certas dificuldades que poderiam viver por causa de sua reação a esse grupo, seria dar um tempo fora do país. Como a sua família tinha se desembaraçado de todos os bens que possuíam no Rio de Janeiro e transformado tudo em imóveis em Buenos Aires e na província, para viajarem de novo era preciso vender quase tudo e por um bom preço. Algo que não poderia ser feito de uma hora para a outra. O problema é que não estavam conseguindo vender nada, sempre que aparecia um futuro comprador, logo em seguida havia a desistência.
A situação só não era muito pior porque seu pai era solicitado como especialista free-lancer e com isso conseguia ganhar dinheiro suficiente para manter um padrão de vida mais ou menos comparável ao que tinham no Rio de Janeiro. Ela e a irmã estudavam. Ela, Sociologia na Universidade de Buenos Aires. A irmã em um colégio particular. Durante dois anos foi possível aquele tipo de vida até sumirem os trabalhos temporários de seu pai, mas, como ainda tinham uma boa reserva financeira, capaz de mantê-Ios por mais uns três ou quatro anos com gastos controlados, foram ficando.                                             facultadcienciassociales
As complicações para o lado deles ainda demoraram um pouco a chegar, como se estivessem esperando que as dificuldades financeiras e profissionais de seu pai fizessem efeito. Embora ela e a irmã tivessem conseguido empregos para custear os seus gastos pessoais, roupas, fins-de-semana, diversões, etc., o quadro recessivo provocado pelo Plano Austral aprofundava a melancolia e a depressão de seu pai, Rodolfo, que sem saber como sair daquela situação, acabou por aceitar uma auditoria a ser feita em sua antiga empregadora, a Nutrifomento. Três meses depois de ter iniciado a auditoria, Rodolfo é preso por sonegação e fraude fiscal, acusado pelos mesmos diretores que o tinham contratado. A trama foi planejada para que ele fosse responsabilizado por um desvio de impostos da ordem de dois milhões de dólares. Um valor que em muito ultrapassava todos os bens familiares.                                                                                         floridacordoba
O resultado foi uma tragédia, Rodolfo se suicida no dia 1 de maio de 1986, com um tiro no peito, aproveitando a oportunidade de todos terem ido participar dos festejos do Dia do Trabalhador na Plaza de Mayo. Para Cassandra, Consuelo e Silvina, sua mãe, era apenas o início de mais problemas e confusões, pois, tiveram que se desfazer de todos os seus bens para saldar parte da “dívida” fiscal, ficando apenas com o apartamento que moravam, na avenida Córdoba, quase com Florida. O pior de tudo, segundo a Cassandra, foi assistir a lenta e gradual demolição física e mental de Silvina, que andava pelos cômodos a perguntar em voz alta: “Por que eles mataram o Rodolfo ?”
Era uma pergunta que ninguém sabia como responder. Entretanto, como a vida continuava a correr e muita coisa precisava ser posta em ordem, certo dia, quando arrumava e selecionava papéis e documentos que pertenceram a Rodolfo, Cassandra encontrou um recibo de aluguel de um cofre bancário, junto havia um envelope com uma chave e uma série de números. O banco, ainda que argentino, ficava em Montevidéu, assim, só quando chegaram as suas férias é que pôde atravessar o Rio da Prata e verificar o que continha no cofre.
Ao abrir o cofre viu que havia apenas uma pequena valise de segredo. Nervosa e sentindo um receio que não sabia de onde vinha, pegou a valise e rapidamente saiu do banco à procura de um café pouco freqüentado para estudar o conteúdo daquilo que deveria ter sido muito importante e de extremo valor para o seu pai, tanto que o cofre estava com os aluguéis pagos até 1995. Lá mesmo no centro da capital uruguaia, instintivamente, escolheu um café quase vazio e os poucos clientes pareciam ser pessoas aposentadas, que lendo os jornais gastavam o tempo. Mais tarde, quando novamente voltou a Montevidéu, é que notou o nome do café, “Café lpanema”. Os números do envelope eram os códigos para abrir a valise, que foi aberta com muita cautela. Encontrou, além de uma carta de Rodolfo, diversas cópias de memorandos, de ordens de pagamento e de depósitos bancários.
Na carta, Rodolfo explicava que se alguém que não fosse ele mesmo a estivesse lendo era porque estava morto. Em linhas gerais a carta contava sobre a sua descoberta de que a Nutrifomento, há tempos realizava operações financeiras de pagamentos, depósitos e saques no exterior muito acima de sua capacidade de realizar lucros ou dividendos. De início pensou que essas transações eram uma espécie de burla fiscal, mais tarde, depois de ter analisado os balanços internos e externos da empresa, verificou que aquelas operações só existiam para legalizar grandes aportes financeiros, que posteriormente eram deslocados para algumas contas de bancos das Bahamas e Ilhas Cayman, principalmente para um obscuro lnternational Caribean Bank. Em sua investigação Rodolfo ao identificar alguns dos beneficiários dessas operações ficou estarrecido com o envolvimento de inúmeras personalidades e companhias estrangeiras e argentinas. As cópias dos memorandos, das ordens de pagamento e dos depósitos bancários representavam as únicas provas que tinha obtido em dois anos de pesquisa e investigação até cair na desconfiança dos novos dirigentes da firma. Nessa carta testamento, o pai de Cassandra além de informar sobre esses grupos e pessoas, deixou bem claro que temia por si e pela segurança de sua famIlia.
Segundo as pesquisas de Rodolfo, tudo indicava que havia uma grande organização manipulando parte considerável do sistema financeiro mundial, com fundos de origem duvidosa, através de investimentos diretos em Bolsas, por meio de fundos, pelo controle de empresas dedicadas à commodities e de bancos de investimento. A sua situação começou a ficar complicada e difícil quando conseguiu localizar a fonte de alguns “empréstimos”, um inexpressivo banco de Liechtenstein, há pouco citado num relatório da ONU como um importante” distribuidor” de recursos financeiros do mundo do crime, de sonegadores fiscais e etc.. Ao ser descoberto tentou explicar que estava apenas verificando se aquele dinheiro podia ser prontamente utilizado pela empresa e quais eram as condições do empréstimo. Foi comunicado que aquele assunto era apenas da competência dos diretores executivos. Logo foi afastado de suas funções e depois demitido, sendo, então, advertido de que ficar em silêncio seria a melhor coisa para ele e família.

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Konzern -IV-

Montecarlo           O franco-argelino tinha cabelos e olhos castanhos, entre 1,82m e 1,84m de altura, pesava cerca de 70 quilos, usava óculos para corrigir uma pequena miopia, exímio no uso de armas de fogo e excelente nas artes marciais. Gostava de falar baixo e pouco, pois detestava ser notado. Embora fizesse bastante sucesso com as mulheres, graças ao modo gentil e cavalheiresco de tratá-Ias, jamais ultrapassava o limite de três meses com a mesma mulher. Apenas duas pessoas o conheciam em termos de intimidade. Uma ficava em Mônaco, com a obrigação de tomar conta e guardar a sua casa, evitando visitas inesperadas e inoportunas. Belen-tigui, “o senhor da palavra”, no dialeto mande de Mali, retribuía com lealdade e dedicação o fato de poder continuar vivendo a sua velhice com dignidade, sem os riscos da miséria que grassa em sua terra e de ter escapado de ser mais uma vítima dos golpistas que assassinaram Modibo Keita, um devotado defensor da Unidade Africana, em 1977. A outra, uma velha de 81 anos, Claire, irmã de seu pai, era o único parente vivo e conhecido que tinha, ainda vivia em Argel e era mantida por ele, que a visitava de vez em quando. Coincidência ou não, ambos possuíam deficiências físicas que os tornavam ideais para o tipo de vida que levava. Um era quase cego. Claire estava semiparalítica, ouvia por aparelhos e ao contrário de Belen-tigui, que sabia um pouco sobre algumas de suas atividades, acreditava que o sobrinho vivia exclusivamente dos negócios deixados pelo pai.

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Os negócios e as atividades de Gérard deviam ir de vento-em-popa, pois, segundo os dados fornecidos pelas fitas e documentos, era possuidor de mais de dez milhões de dólares depositados nas Bahamas, mais cinco milhões em nome de Paolo Marchese e Ramón Martínez, identidades fictícias que ele criara há algum tempo. Personalidades que lhe asseguraram os meios para melhor conhecer o Konzern, ainda que tenham sido criadas para lhe dar segurança e facilidades para suas operações comerciais e financeiras Um conhecimento necessário para poder descobrir os motivos, as pessoas e quem decidira pela sabotagem do avião de seus pais.
Entre o dia que tomara ciência do assassinato de Marcel e Camile por ordem do Konzern, até o seu desaparecimento no Índico, Gérard descobrira que a negação de Marcel em ceder os nomes de suas firmas de exportação-importação, mais o uso de sua pequena participação acionária numa inexpressiva corretora de câmbio e valores do principado de Liechtenstein, criada por ex-Legionários, para alguns representantes do Konzern, foram os fatores determinantes para a morte de ambos. Sabia também que essa “corporação” tinha em sua folha de pagamentos, além dos inevitáveis peritos em provocar “acidentes” fatais para os eventuais opositores de seus propósitos, inúmeras autoridades públicas, altas figuras do mundo político mundial e um considerável grupo de especialistas em serviços de inteligência recrutados da CIA, DEA, Mossad, KGB e outros serviços secretos. Assim, graças à experiência de lidar com alguns desses organismos, adquirida em sua vida de “soldado da fortuna”, aliada a uma série de amizades e troca de favores com personalidades do meio político-financeiro europeu e africano, gradual e lentamente foi se infiltrando naquela “corporação”.
Paolo Marchese e Ramón Lorenzo de Martínez foram criados a partir de verídicas certidões de nascimento de dois órfãos, mortos quando ainda estavam com pouco mais de um ano de idade. Ambos nasceram no mesmo ano de 1947, igualmente brancos, cabelos e olhos castanhos, conforme os dados constantes nas fichas dos orfanatos. Fichas que jamais serão encontradas por alguém, pois, foram queimadas por Gérard. Encontrar crianças nascidas em 1947, órfãs, com certidões de nascimento oficiais e mortas ainda bem pequenas não foi muito fácil, principalmente porque essa busca tinha que ser sigilosa, quase inexistente.

PiazzaleMichelangeloFlorence
Em Florença, por acaso, soube que um antigo orfanato católico estava com sérias dificuldades para prosseguir em sua obra de caridade, curioso e com a esperança de obter o que há algum tempo procurava, foi visitá-Io e, em lá chegando, notou que o sentido de ordem e organização há muito tinha deixado o orfanato. Perguntou pelos arquivos, alegando que era preciso recuperar a memória da instituição e disso fazer um poderoso marketing para angariar recursos para salvar o orfanato, desse modo pôde botar as mãos no que precisava Ao manusear as pastas espalhadas por uma sala pomposamente chamada de Arquivo Geral e Histórico, depois de muito pó e sujeira, encontrou o que ansiava. Lá dentro, no meio de vários outros papéis, havia uma ficha e uma certidão de nascimento de 1947, atestando que Paolo Marchese era órfão de pai e mãe, camponeses mortos numa enchente do rio Arno, vindo a falecer em 1948 de injluenza e enterrado como indigente. Era o ano da graça de 1976.
Obter a certidão de Ramón deu um pouco mais de trabalho, pois, quando decidiu que havia a necessidade de mais uma identidade e que esta deveria ser de um lugar bem distante de onde tinha atuado e trabalhado, levou suas pesquisas para o Cone Sul das Américas, Argentina ou Chile. Foi em Santiago que soube, por intermédio de alguns informantes da DINA, o terrível serviço secreto de Pinochet, ser possível conseguir no Registro Civil Público da Província de Mendoza, Argentina, cópias de certidões de nascimento antigas. Bastava contratar um escritório de advocacia e solicitar a cópia. Antes, entretanto, Gérard consultou jornais e diários oficiais da Justiça daquela província argentina para saber a respeito de óbitos, casamentos e nascimentos. Assim tomou conhecimento de que um garoto de um ano de idade tinha sobrevivido ao desastre automobilístico que vitimara seus pais e irmãos no alto da cordilheira andina.
O menino, Ramón Lorenzo de Martínez, nascido em Mendoza, filho de imigrantes espanhóis fugidos da Guerra Civil espanhola, fora entregue aos cuidados de um orfanato público e, segundo as investigações posteriores descobriram, veio a falecer um ano depois, em 1949, causa mortis desconhecida. Tão logo obteve as precisas informações a respeito de Lorenzo, com a ajuda de um escritório de advocacia espanhol, nas Ilhas Canárias, requisitou a cópia da certidão de Ramón sob o pretexto de resolver uma questão sucessória. Assim, em 1978, renascia Ramón Lorenzo de Martínez.

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Paolo Marchese, rico florentino, estabeleceu-se em Boston como livreiro e antiquário pelos fins de 1979. Logo criou uma boa reputação no meio acadêmico e intelectual, não só como um sério e honesto fornecedor de obras raras e eruditas, porém, acima de tudo, por seu alto grau de sofisticação, discrição pessoal e desempenho nos jogos que exigiam boa aptidão atlética. Residia nos arredores de Cambridge, bem próximo ao campus da Universidade de Harvard, em uma casa estrategicamente afastada de vizinhos, porém com as características de uma típica moradia para uma pessoa que gosta do estudo e do recolhimento.
A casa tinha o mesmo estilo das modernas casas da Nova Inglaterra que tentavam resgatar o que havia de melhor nas arquiteturas vitoriana, tudor e atual. Amplas salas, biblioteca revestida de madeira de lei, assoalhos de tábuas corridas, tetos e escadas de pinho-de-Riga, bay-windows circundando a biblioteca e as salas, algumas árvores e um jardim gramado faziam da casa, não só um bom lugar para se esconder, mas, acima de tudo, em certos momentos, provocava-lhe a agradável sensação de ser um simples e comum mortal. É evidente que pelo menos uma vez a cada três meses, quando por lá estava, abria a sua casa para alguns professores, intelectuais e políticos de projeção. Paolo mantinha uma discreta distância do círculo universitário, que o tinha aceito por seus préstimos profissionais, por sua cultura, bom gosto e reserva.
Sua livraria, “Giordano Bruno”, embora grande e muito movimentada, tinha poucos servidores fixos, os demais eram estudantes das universidades próximas, Os funcionários fixos, verdadeiros peritos em obras raras e eruditas, foram conquistados a peso de ouro de outras livrarias e antiquários de Massachusetts e New York. Como os seus salários e comissões de venda em muito ultrapassavam os preços correntes do mercado, mais alguns prêmios, férias de trinta dias e gratificações que chegavam a totalizar mais de quinze salários por ano, Paolo tinha conquistado a confiança e a lealdade deles. Uma lealdade e confiança necessárias para a tranqüilidade de Paolo, principalmente porque costumava se ausentar por longos períodos, quando apenas recebiam as suas instruções e recomendações por fax. Em termos bem pessoais, a despeito de seu esforço em manter certa privacidade e distanciamento de envolvimentos íntimos, Marchese, nos últimos meses que antecederam o seu desaparecimento, mantinha relações amorosas com duas jovens da região, uma jornalista de Boston e uma mestranda em Economia Política do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Enfim, a casa, a livraria-antiquário e as duas namoradas eram uma camuflagem muito bem estruturada e consolidada.

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Ramón Lorenzo de Martínez, nascido em San Rafael, Mendoza, Argentina, era proprietário de uma média companhia de importação-exportação, economista, mantinha duas residências fixas: um apartamento na Av. Santa Fé, quase na Plaza San Martin, em Buenos Aires e um chalet em Vallecitos, Mendoza, na cordilheira dos Andes. O apartamento de Buenos Aires, dois andares, incluindo a cobertura, ficava num edifício bem amplo, bem no estilo daqueles construídos em Paris, dans le fin de siecle. Internamente o apartamento tinha todas as comodidades e confortos atuais, constantes de calefação total, banheiros e closets nos três quartos e na biblioteca, três salas, uma ampla varanda coberta no terraço que se abria para os três quartos. Além do conforto e de estar morando no eixo da capital platina, Ramón também podia entrar e sair do prédio pela calle Esmeralda. Era uma excelente localização, pois, além de ficar bem perto de seu escritório, Viamonte com 25 de Mayo, também o deixava próximo do novo centro financeiro da capital portenha, do Aeroparque de Palermo, onde ficava o hangar de seu Lear Jet, ou, caso fosse impossível viajar no avião, através dos aerobarcos que ligam Montevidéo a Buenos Aires por onde poderia sair da Argentina sem problema algum.
Sua casa em Vallecitos, na cordilheira dos Andes, adquirida de um falido produtor de vinhos finos, a exemplo de suas outras residências, mais do que outra coisa, garantia-lhe o que mais fazia questão de ter, privacidade, segurança e facilidade de deslocamento. Era uma sólida construção no estilo dos modernos chalets alpinos, com três quartos, uma enorme sala com lareira, uma fornida adega, uma ampla cozinha, garagem para dois carros e uma pequena casa para os empregados. Os móveis, todos em madeira maciça, combinavam com o interior da casa, todo revestido de pinho. Esta casa, parecia ser a predileta de Gérard/Ramón, tanto que sempre passava anualmente mais de quatro meses por lá.
Uma situação favorecida pelo fato de que sua companhia de importaçãoexportação tinha como principal atividade a venda dos produtos regionais. Essa companhia já existia há algum tempo, mas, como os seus proprietários foram acusados de dar apoio e cobertura para os Montoneros, um grupo peronista de esquerda que combatia a direita argentina e a ditadura, ao oferecer um valor mais alto do que eles estavam pensando, em 1979 adquiriu o controle de 80% da empresa e a simpatia de vários moradores locais. A partir de 1980, com a contratação de especialistas espanhóis e franceses para melhorar a produção de alguns dos vinhos vendidos por sua firma, Ramón deu início à consolidação de seu relacionamento e prestígio junto aos grandes terratenientes do vinho e conseqüentemente o ingresso no fechado círculo do poder rural argentino.

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Konzern – III – En las ramblas de Barcelona

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O início de todo esse imbroglio foi o mais bem intencionado possível, mais uma vez se comprovando a verdade daquela famosa assertiva de Dante. A partir de 1943, quando as tropas aliadas que combatiam o Eixo planejavam a invasão da Europa ocidental, uma questão se tornou premente e necessária para a rapidez dos movimentos e para reduzir as perdas humanas, destruir e desorganizar as linhas de abastecimento e transporte nazistas. O único meio, além do uso dos grupos especiais de sabotagem e dos guerrilheiros antifascistas, como os maquis, os partigiani e os partisans, sob o comando e a orientação dos serviços secretos ingleses e norte-americanos foram agregados alguns grupos de criminosos nesse tipo de ação. Conhecimento do teatro de operações, domínio dos idiomas, experiência em práticas clandestinas e redes operacionais internas, eram algumas das vantagens oferecidas por esses novos comandos. Legítimos peixes dentro d’água.

Assim foi pensado e assim foi feito. A contrapartida veio na forma de uma espécie de anistia por parte das autoridades aliadas. Como a base dessa atípica operação foram os Estados Unidos, diversos desses grupos optaram por privilegiar algumas atividades legais, sendo que alguns de seus expoentes chegaram a ter decisiva participação na política norte-americana, direta ou indiretamente, dando até origem a uma famosa fanulia de políticos. Grandes construtoras, casas de diversão e jogos, transporte e empresas financeiras passaram a ter prioridade para tais grupos, que continuavam a captar recursos de empreendimentos marginais. Desse modo, seguro e metodicamente, foram diversificando os seus ramos legais, ampliando a capilaridade de seu sistema ilegal. Ao mesmo tempo em que se descentralizavam em termos operacionais, concentravam todos os recursos, garantindo um poder financeiro extremamente poderoso e uma formidável rede mundial de comunicação e conexão.

Esses grupos tinham um excelente processo de intercâmbio, além de uma larga experiência de vida clandestina, tendo como justificativa os interesses estratégicos da “Guerra Fria”, alguns serviços de inteligência das potências envolvidas naquela “guerra” resolveram utilizar parte dessa estrutura no exterior em troca de algumas facilidades e olhos fechados para suas atividades nesses países. O sudeste asiático (Tailândia, Cambodja, Vietnã), a América Latina (Bolivia, Colômbia. Guatemala, México, etc.) e alguns países do leste europeu e da Ásia foram os principais alvos, uns por sua estratégica posição geopolítica, outros porque ofereciam mão-de-obra e condições físicas ideais para a expansão de alguns produtos como o ópio, a heroína e a cocaína, além daquelas drogas produzidas e sintetizadas em grandes laboratórios.

O problema começou a ganhar os contornos atuais a partir dos anos 60. Quando, a exemplo das empresas multinacionais e pela necessidade de aplicar o formidável capital que controlavam, com o apoio técnico desses experts em finanças e em administração empresarial, oriundos daqueles serviços de inteligência, passaram a criar instituições financeiras e fundos de investimentos que transformavam o dinheiro “sujo” em honestos recursos financeiros. Esses recursos, agora limpos e saudáveis, sempre a partir de paraísos fiscais, não só se reproduzem, como ganham o status de verdadeiros fiéis da balança de uma considerável parte do mercado financeiro internacional. Os paraísos fiscais são o resultado de uma hábil criação de financistas e políticos para proteger qualquer tipo de capital, pouco importando a sua origem, como direito ao sigilo e à privacidade, a exemplo da Suíça e Liechtenstein. Desde os tempos de Meyer Lansky, tido e havido como o grande cérebro financeiro da Máfia estadunidense entre os anos 40 e 60, que nos cassinos de Havana, da Cuba de Fulgêncio Batista, eram comuns as conversas a respeito da transformação de Cuba numa espécie de Las Vegas caribenha e paraíso fiscal, tais as vantagens geradas para o capital sem origem definida. Como Fidel Castro abortou esse projeto, Cuba ganhou inimigos eternos.

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Assim, gradualmente, foram se transformando no poder atrás do poder. O controle acionário de empresas, sempre por intermédio de fundos de pensão privados e de fundos de investimentos, a criação e montagem de outras mais modernas e de tecnologia de ponta, aliados ao fluxo de capital oriundo de paraísos fiscais e aos benefícios propiciados por países que tentam captar investimentos, garantiram a esses grupos um grau de poder extremo e secreto. Um poder tão sofisticado e diverso que, na atualidade, adotou a “terceirização” de suas práticas mais perigosas e sujas, como o narcotráfico, o que lhe garante meio trilhão de dólares anuais de lucro, segundo dados da ONU. Gente qualificada, empresas legais, governos dóceis, enormes recursos financeiros e os numerosos “exércitos”que controlam nas miseráveis periferias das grandes metrópoles mundiais, mais do que uma ameaça futura e fantasista, são uma realidade e uma amostragem do poder que têm para interferir na economia, na política e na vida de todo o mundo.

Em linhas gerais, com a exceção de alguns detalhes mais específicos a respeito de certas personalidades e organizações internacionais, quase tudo fazia parte do conhecimento analítico de David. A grande novidade estava no entrelaçamento dos vários grupos e organizações criminosas com poderosas e insuspeitas instituições financeiras internacionais, dentro e fora dos paraísos fiscais. Não chegava a ser uma surpresa, pois, através do estudo da História das grandes potências, era fácil se concluir que o seu poderio tinha origem na rapina e nos saques de povos mais fracos. A real novidade repousava no gentlemen agreement que orientava suas atividades, tanto as legais, quanto as ilegais.

Do ponto de vista ideológico, digamos assim, a questão era mais complicada ainda, posto que, seja em que posições ficassem, o discurso e a prática tinham o mesmo diapasão e argumento – o poder se legitima em si mesmo e a todos deve ser assegurado o direito de atingí-lo. O processo ideológico tem nas áreas de divertimento e cultura o seu braço mais visível e mais insidioso. Ao resgatar as teses liberais do início do capitalismo, como o livre arbítrio, em que o ser humano é o único responsável por seus atos, portanto capaz de exercer essa liberdade como melhor lhe aprouver e de acordo com suas aptidões e anseios de bem-estar e felicidade, criou-se a justificativa para a entronização do egocentrismo como o único valor possível.

Para David, mais um contemplativo do que um homem de ação, tudo aquilo era preocupante e exigia um pronto combate. Sua indignação e horror ante o futuro que as palavras de Cassandra indicavam, mais a sua honesta capacidade de analisar os fatos, foram as armas que ela usou para conseguir o seu compromisso de participação. Só entendeu que estava envolvido, quando, de forma quase arrebatada, viu-se discutindo os primeiros passos do que faria.

Tentou reagir, evitando aprofundar a conversa e o grau de seu conhecimento. Receava que algo de muito ruim pudesse acontecer com seus dois filhos e sua fami1ia, pelo menos foi o que disse. Cassandra logo o aquietou com sua voz de contralto, afirmando que ninguém jamais saberia de sua participação, mesmo que fosse exaustiva e minuciosamente investigado, a não ser que resolvesse sair por aí dando com a língua nos dentes. Mais tranqüilo, deixou que suas fantasias de aventuras e a possibilidade de ganhar dinheiro fazendo algo eticamente defensável decidissem por ele.

– Então estamos acertados. Agora, antes de tudo, é preciso que adquira extrema fluência em italiano, inglês, espanhol, francês, africâner e swahili. É necessário que as fale, leia e escreva como se fossem suas línguas nativas. Além disso, como parte de seu treinamento, terá que aprender outras coisas. Coisas que poderão ter grande utilidade em algumas situações que vá viver. Uma coisa tem que ficar bem clara – a sua vida depende do seu silêncio, da sua inteligência e capacidade de aprender o que lhe será ensinado.

– Depois desse período de treinamento e se for aprovado por nós, você receberá a liberação para o que pretendemos. Em seu quarto, no hotel, encontrará um envelope contendo vinte e cinco mil dólares e as informações a respeito do local em que será treinado. Em uma maleta de segredo, também em seu quarto, terá outros dados que lhe serão úteis e necessários para a sua missão. Os dados estão em videocassetes, você tem que memorizar tudo, pois, cinco horas depois de expostos, serão apagados. Não anote nada. Guarde tudo na memória.

– E se eu, após ter visto tudo, não quiser mais fazer nada ? O que faço ? como falarei com você?

– É um direito que não deve ser exercido. Entretanto, como você já sabe e saberá de muito mais, mesmo sem significar nenhuma ameaça para nós, seríamos obrigados a adotar algumas medidas bem desagradáveis contra você. Nem pense nisso. Quanto a falar comigo ou outra pessoa da Organização, durante certo tempo a iniciativa será sempre nossa. É bom não esquecer que sempre haverá alguém lhe vigiando e cuidando de sua segurança pessoal até que seja considerado apto. Ciao.

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Assim que ela se afastou, com certa urgência, procurou uma outra mesa e em outro bar, instintiva e logicamente escolheu uma mesa em que ficava de costas para a parede. No entanto, pressionado por sua imaginação e certo medo, logo pagou a conta e saiu. Como estava hospedado num hotel, que em priscas eras fora um convento, bem ali por perto, sem ter nenhuma razão lógica, achou que lá estaria mais seguro. Só não saiu correndo porque sabia que ninguém iria entender o seu gesto e porque isso chamaria muita atenção sobre ele. Na opinião dele, foram os maiores e mais longos duzentos metros que percorreu até hoje.

No hotel, protegido pelas grossas paredes, embora curioso sobre o envelope, a maleta e as instruções, mais a vontade de tocar nos vinte e cinco mil dólares prometidos, demorou em ir para o quarto. No bar, uma mistura de ascetismo de outros usos com toques de um café parisien, havia alguns casais e uns poucos desacompanhados. A todos olhou com suspeita. Alguém ali era um olheiro de Cassandra. Ficou por um bom tempo tentando imaginar qual daquelas pessoas seria o olheiro, ao mesmo tempo em que disfarçava o medo que estava sentindo. Porém, como fugir ? se eles sabiam de sua vida melhor do que ele próprio. E as provas estavam queimando em seu bolso. Cem mil dólares depositados em sua conta bancária. O recibo de dois anos de pensões alimentícias, quase trinta mil dólares. Toda a sua alegria de estar em Barcelona tinha ficado lá na Plaza Castellana.

Sua mente não parava um minuto, analisando o que ouvira e o tipo de responsabilidade assumida por ele. Máfia, Cosa Nostra, Yakusa, Tríade de Hong Kong, União Corsa, OSS, CIA, MI-15, DEA, generais tailandeses, boinas-verdes, banqueiros, assassinos, indústrias de tecnologia de ponta, narcotraficantes, paraísos fiscais, golpes de Estado, contras da América Central, guerrilhas e guerras locais. Era a cruel e dura realidade do mundo entrando e mudando a sua vida. E ele com a desagradável sensação de ser um patinho em galeria de tiro-ao-alvo. Mais irritante era a sua dificuldade em imaginar qual seria o seu papel em tudo aquilo. Qual seria a sua importância ? Sabia que já valia mais de cento e cinqüenta mil dólares. Para fazer o quê ? Por que ele ?

Já no quarto, mal abriu a porta, correu logo à procura do envelope e da maleta. Estavam exatamente onde a Cassandra dissera que estariam, em cima da cama. O envelope continha apenas as instruções para abrir os fechos de segurança da maleta de couro marron. Os segredos para os dois fechos eram as data dos aniversários de André e Jean-Marc. Lá dentro estavam os vinte e cinco mil dólares, seis cartões de crédito, três passaportes, três licenças de motorista, cinco talões de cheques usados e mais três completos, um gravador com duas fitas cassetes, quatro fitas de vídeo, uma pistola Glock 7,65 mm, feita de um tipo especial de liga de çarbono, o que a tornava invisível ante os detectores de metal, com seis carregadores e duas caixas de munição. Ainda havia uma pasta com vários documentos. Gastou um bom tempo na contagem e recontagem dos dólares, maravilhado por ser o possuidor daquele dinheiro todo. Depois desse comportamento quase infantil com os dólares, examinou o resto, sempre seguindo o roteiro traçado numa folha de papel timbrado do hotel.

Os passaportes, os cartões de crédito, as licenças de motorista e os talões de cheque estavam em nome de três pessoas que tinham o mesmo rosto. Obedecendo à orientação escrita, ouviu primeiro as duas fitas cassetes, que lhe esclareceram sobre os três nomes e todos aqueles documentos. Documentos sobre empresas, certidões de nascimento, títulos de propriedade de casas, apartamentos, lojas e fazendas; um brevet para pilotar aeronaves de qualquer tipo; recibos de compras de livros, do aluguel de containers e de cofres em dois bancos suíços. Toda essa parafernália compunha a vida e a personalidade de um franco-argelino, Gérard Leaud Perin; de Paolo Marchese, florentino; de Ramón Lorenzo de Martínez, argentino de Mendoza.

Todos eram extremamente bem sucedidos nos negócios que faziam. Tanto que só contando com o dinheiro depositado em suas contas, eram donos de quinze milhões de dólares. Com as propriedades e outras coisas listadas, a fortuna dos três atingia quase trinta milhões de dólares. Uma quantia que poderia crescer em muito, depois de conhecido o conteúdo dos cofres bancários. As fitas continham uma espécie de briefing das “biografias” de cada um deles. As demais informações estavam nos vídeos. Tudo tinha que ser memorizado, detalhe por detalhe. De tudo aquilo havia algo que o deixara bastante preocupado e poderia bem ser a razão de seu forçado e estranho recrutamento, a incrível semelhança entre ele e os donos dos passaportes. Em tudo por tudo era semelhante às fotos e aos dados físicos fornecidos pelas fichas deles. Cabelo, altura, cor dos olhos, a miopia, a única diferença ficava por conta do peso, pois, embora fosse magro, eles eram mais magros.

Gérard Leaud Perin, nasceu em 23 de março de 1947, em Argel, filho de Marcel, ­fazendeiro, major reformado da Legião Estrangeira, sobrevivente da batalha de Dien Bien Phu, ex-integrante da OAS (Organisation de l’Armée Secret)- e uma descendente da falida aristocracia francesa, Camile. Gérard, em virtude da posição político-militar de seu pai contra a independência da Argélia e contra Charles De Gaulle, depois de estudos elementares e secundários em Argel e Nice, teve o seu pedido de inscrição na escola preparatória de Saint-Cyr, como era de praxe para todos os filhos de oficiais e descendentes da nobreza francesa, recusado. Tal fato determinou que o restante de sua educação fosse em Thiés, Senegal e em Capetown, África do Sul, em colégios mantidos por entidades direitistas e defensoras do colonialismo. Nessas instituições educacionais, além do tradicional currículo escolar, em que se misturavam os modelos francês e inglês de educação, havia também um especial adestramento paramilitar, com o ensino de táticas e estratégias militares clássicas, de guerrilhas e terroristas. O seu aproveitamento foi tão extraordinário que aos 17 anos de idade era o chefe do “estado-maior” das turmas de sua última escola.

Aos vinte e dois anos de idade fica órfão, com a morte de seus pais num estranho acidente aéreo nas montanhas Aures, na Argélia. Nessa época, por insistência da família, estava iniciando os estudos de economia em Johanesburg, preparando-se para substituir o pai nos negócios familiares – fazendas de gado na África do Sul e duas firmas de exportação e importação, uma sediada em Ar~el e outra em Mônaco. Com a morte dos pais, herdou todos os bens e uma pequena fortuna em dinheiro, dois milhões de dólares, depositados em um banco monegasco, e uma tia inválida, Claire, irmã de seu pai. Graças a esse dinheiro depositado em Monte Carlo, assegurou o direito de residência no principado e tendo o apoio de dois amigos de seu pai, deu prosseguimento aos negócios, garantindo reais justificativas para o posterior aumento de seus bens e fortuna.

Uma riqueza que iria crescer com os ganhos auferidos por suas atividades como soldier of fortune, o modo pelo qual deu aplicação e utilidade ao seu aprendizado escolar, bem como das amizades e relacionamentos que fez durante aquele período. Suas ações como militar mercenário bem sucedido e melhor pago tiveram o ano de 1972 como marco, Ghana foi o palco dessa vitoriosa estréia, quando, junto com outros aventureiros da sorte, participou do golpe de Acheampong contra Kofi Busia, que tinha deposto N’Krumah. Como a sua especialidade era o planejamento tático e logístico das operações, quase não corria risco, nem se tornava muito conhecido, assim conseguiu se graduar em Economia e com isso ganhar extremo crédito e respeitabilidade para as empresas herdadas, principalmente por estar sempre com um capital de giro maior que as necessidades dos negócios de suas firmas. Mais tarde, em virtude do seu campo de ação estar se expandindo com velocidade, pois, passara a ser um aplicador dos recursos financeiros de alguns de seus colegas de aventura, criou uma pequena empresa de consultoria técnica de investimentos em Porto Vitória, Ilhas Seychelles. Onde, há pouco mais de um ano, acabou morrendo num desastre náutico, quando o iate em que viajava explodiu sem deixar nenhum sobrevivente. O seu corpo, desaparecido no mar, mesmo depois de inúmeras buscas, até hoje não foi encontrado. portvictoriaseychelles.jpg

Entre os anos 75 e 85, direta ou indiretamente, esteve envolvido em muitas atividades militares mercenárias e terroristas de direita na África, Oriente Médio e América Central, ora realizando o treinamento de grupos paramilitares, ora desenvolvendo o planejamento para essas ações. Na África, que era o seu teatro-de­operações mais conhecido, participou de inúmeras operações patrocinadas pela CIA, sob o comando do coronel John Stockwell, contra a independência das antigas colônias portuguesas e inglesas através do fornecimento de armas e tropas mercenárias para Holden Roberto, Jonas Savimbi e etc..

Em termos africanos o seu último envolvimento aconteceu durante a execução do projeto norte-americano, Proteu, na administração Ronald Reagan. A finalidade desse projeto era esmagar o processo de emancipação e independência de Angola, Namibia e Moçambique, como meio de preservar o regime racista da África do Sul e controlar as fantásticas jazidas minerais dessas ex-colônias.

Foi um período muito arriscado, porém muito rico em ganhos financeiros e conhecimento sobre o submundo das relações político-econômicas internacionais. O ano de 1981 foi muito especial para Gérard em vários aspectos. Primeiro porque descobriu os porquês da morte de seus pais, embora desde 1975 soubesse que o acidente tinha resultado de uma sabotagem no avião de seu pai. Segundo, por ter feito o primeiro contato físico com o que passou a chamar de Konzern, uma espécie de corporação das mais variadas empresas e atividades internacionais legítimas e criminosas.

Esse encontro se deu nas ilhas Seychelles, quando, já sabedor de que seus pais tinham sido assassinados e do envolvimento do Konzern no evento, organizou grupos táticos de combate para Albert René, um nacionalista de esquerda, contra o lendário ex-coronel Mike Hoare, que seqüestrando um avião, vergonhosamente fugiu para a África do Sul. Esse famoso mercenário era o comandante das tropas que, sob as ordens do governo sul-africano e orientação de James Mancham, um ex-presidente da República de Seychelles, tentaram derrubar o progressista e popular governo de Albert René. O aumento da fortuna, o desejo de segurança, sigilo e maior participação no quadro mundial que antevia, mais à vontade de vingar o assassinato de seus pais, foram os fatores determinantes para uma nova guinada em sua vida

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KONZERN – II –

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Tudo pareceria muito irreal se não houvesse muitos indícios e fatos dando credibilidade e força aos argumentos que lhe foram apresentados naquele primeiro encontro. Há muito sonhava com aventuras, fortuna e viajar pelo mundo. Desde garoto, embalado pelos romances de aventura e filmes policiais, tinha a profunda vontade de um dia também sentir aquelas emoções e sensações. O problema era a realidade, com o seu cruel vezo para desmancha-prazeres. Como sua família, de classe média, média mesma, era numerosa, logo teve que procurar emprego e com o emprego vieram as pequenas e várias responsabilidades do dia-a-dia. Responsabilidades que o prendiam mais e mais ao cotidiano de alguém que sempre sabe que vai sobrar dia em seu salário. Além dessa peculiar perseguição da realidade, por obra e graça de suas veleidades e predileções intelectuais, escolhera ser professor de História. Lá no fundo ele sabia que aquela escolha estava umbilicalmente ligada aos seus sonhos de heroísmos e fantasias de aventuras, uma espécie de Indiana Jones latino-americano com Schliemann.

A grande diferença estava no tipo de vida que levava, ensinando para quem não queria aprender e que acreditavam ser a História um assunto destituído de razão nos novos tempos globalizados. Sem contar com a questão salarial que o obrigava a uma jornada de seis aulas. A coisa era tão repetitiva e sem nenhum valor didático ou científico que às vezes temia ser substituído por um CD-Rom. Nada em sua vida prenunciava aventuras ou riscos, tanto que até a sua participação política, se é que aquilo merecia esse nome, ficou restrita ao movimento classista reivindicatório. O único perigo que correu não teve nada a ver com as aventuras sonhadas, pois seria demais ver uma conspiração nacional ou estrangeira contra ele, quando numa das enchentes do Rio de janeiro, quase é engolido por um grande bueiro aberto. Os riscos ficavam por conta de sua ex-mulher Louise, que vivia fazendo ameaças de prisão caso atrasasse as pensões alimentícias de seus dois filhos. Entretanto e a despeito desse tipo de vida, havia a tênue esperança de alguma coisa acontecer e tornar realidade os seus sonhos de não-mesmice. O que havia de diferente entre os seus sonhos e o que estava acontecendo, era a falta de controle sobre os acontecimentos. Nos sonhos ele detinha as rédeas, agora, não só tinha medo, como estava sendo manipulado de longe por pessoas desconhecidas e bem poderosas. Lá no íntimo sabia que a curiosidade, a possível fortuna e o rompimento com a rotina é que ditaram as regras e as justificativas para a sua concordância.Alfama4.jpg

Naqueles momentos em que caminhou da Graça até ali e ao subir as escadinhas de São Estevão, compreendeu em toda plenitude as palavras escritas por Cecília Meireles para alguém que viesse a visitar Lisboa, “ficas tão rico de antigamente, tão vencido por um amor de cancioneiro, por uma ternura conventual, dolorosae ao mesmo tempo desejas sorrir, dançar, não pensar nada, ficar por essas praças, por esses jardins que são a imagem da vida e por onde andam crianças como pequenas flores soltas, com laços no cabelo, como felizes borboletas aprisionadas. Ficas extasiado”. Como só tinha olhos para o que de histórico poderia haver e para o afanoso trabalho de reconstrução do que fora destruído pelo incêndio de alguns anos antes, nem mesmo notava que o poente dava novas cores para tudo. Sentia-se muito à vontade e seguro naquela paisagem.

Num certo sentido era assim mesmo que se sentia naquele dia em Barcelona. Estava feliz, contente e muito à vontade por estar ali, julho de 1994, realizando uma velha aspiração. Conhecer a terra de EI Cid, D. Quixote, EI Greco, Goya, Velásquez. Picasso, Lorca, Antonio Machado e também de seu professor de espanhol no colegial, frei Joselito, cuja pronúncia hoje sabia ser andaluz. O Museu do Prado, a Porta do Sol, Toledo, Granada e Sevilha já eram parte de sua memória. Agora estava no país catalão, em sua principal província, Barcelona das ramblas, da Església de la Sagrada Familia, de Antonio Gaudi, Dali e Miró. Como os seus dólares tinham o grave defeito da infertilidade reprodutora e ainda pretendia conhecer Paris e Lisboa, resolveu visitar EI Pueblo Español e dar a Espanha toda por visitada. Na verdade, ainda que nem a si mesmo confessasse, esperava conhecer una bella maja e, depois de contar que era um simples professor brasileiro gozando uma licença, convencê-la da verdade dos versos de Antonio Machado, que recomendava fugir do amor pacato, seguro, sem riscos ou aventuras, pois, afirmava o poeta andaluz, no amor o sensato é a loucura.

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El Pueblo Espaíiol, criado para a Exposição Internacional de Barcelona, em 1929, durante o período da República Espanhola, condensa os aspectos mais característicos e sensíveis da arquitetura regional de toda a Espanha. As fachadas dos edifícios, fielmente reproduzidos, estão agrupadas segundo as antigas divisões geográficas da península. O Conselho Municipal de Barcelona tem dado vida a esse singular Pueblo, ao garantir instalação às oficinas de artesanato mais tradicionais do país: os vidros soprados e estirados, mosaicos, bordados, fundição de ferro em forjas, pratarias, figuras para presépios, estamparias, retábulos, ouro e aço de Toledo, leques, mantilhas. O interessante é que todos esses produtos são fabricados ante os olhares maravilhados do público, que também pode ver folguedos e festas folclóricas de todas as partes da Espanha.

Estar ali era como se pudesse andar por toda a Espanha usando botas de sete léguas. Aquela era a sua segunda visita ao Pueblo. O dia estava quente e ao chegar a Plaza Castellana, suado e um pouco cansado, só pensava em ficar à sombra e beber um bom vinho branco gelado. Mesmo com toda a canseira e suor, que enxugava com lenços de papel, ainda tinha olhos para se alegrar com os muros de pedra cobertos de hera, os lampiões, os arcos e as esculturas murais. Afinal de contas, sentia que valera a pena todo aquele sacrifício feito para lhe garantir essa satisfação, já nem se lembrava do quanto se privara para fazer aquela viagem. Recostado na sombra daquele arco e ocupado na limpeza dos óculos e enxugando o suor, só prestou atenção na moça quando ela já estava em sua frente. Era uma mulher muito bonita, entre os 25 e 30 anos, morena, curtos cabelos negros, um olhar seguro, firme, a boca bem talhada. O lábio inferior ligeiramente caído dava a impressão de estar pronta para ser beijada.

– Professor David, boa tarde. Como está? Não, não fique assustado. Há tempo que desejo lhe conhecer. Calma. Calma. Vamos conversar.

Quem lhe falava parecia realmente saber o que estava fazendo, dizendo, além de se expressar em um perfeito português, quase sem sotaque. Ficou ouvindo, olhando para as pedras da calle e para os turistas que passeavam por ali. Era um desses perfeitos dias espanhóis, cheio de luz e calor. Se não fosse por estar sendo conduzido para fora do Pueblo pelas mãos de uma jovem mulher, muito bonita, desconhecida e forte, tal a pressão sentida no braço, ele juraria ainda estar dormindo no quarto do hotel, talo seu aparvalhamento e docilidade. Só sabia andar, ouvir e olhar com curiosidade para a estranha. Nem mesmo tentar ser espirituoso estava conseguindo. Mais parecia gado sendo levado para o abate.

– Faz tempo que estou querendo lhe falar, Ou melhor, que pretendemos lhe falar. Sabemos tudo a seu respeito. De sua família, dos colégios que leciona, dos seus ganhos, sonhos e até de suas fantasias. O senhor foi criteriosamente escolhido para uma missão. É mais do que natural a sua perplexidade e espanto, afinal de contas, sempre foi assim com todos nós. Professor David, antes de tomar qualquer atitude precipitada, é preciso que me ouça. Juro que será bom para o senhor.puertadeavila.jpg

Assim, falando a respeito de seu conhecimento sobre ele, gentil e firmemente, a estranha o foi levando para um carro estacionado próximo a Puerta de Ávila. Durante o trajeto até as cercanias da rambla S. José, aproveitando o silêncio, David tentava botar um pouco de ordem na sua mente aturdida. Por mais que tentasse as mais absurdas hipóteses justificadoras de uma situação como a que estava vivendo, nenhuma chegava perto. Era o mais legítimo e puro non-sense. Será que estão pensando que sou outra pessoa? especulava. Rapto ou seqüestro não poderia ser, pois, for a o dinheiro guardado na pochette embaixo da calça, nenhum outro ele possuía. Só podia ser erro de pessoa. Assim que ela estacionou o auto e escolheram um dos cafés da rambla, a língua de David destravou.

– Moça, olhe aqui uma coisa. Exijo uma explicação bem explicadinha para tudo isso, caso contrário…

– Caso contrário o senhor chamará a polícia e dirá que está sendo assediado por uma mulher mais frágil que o senhor. É isto?

– Não seja boba. Só quero saber o que está acontecendo, pois, tenho a mais absoluta certeza de nunca tê-Ia visto antes e no entanto você sabe mais de mim do que eu mesmo. Você falou sobre uns projetos. Não quero saber quais sejam e também não tenho a menor vontade de participar em nenhum deles. Só quero terminar a minha viagem em paz, sem nenhuma morena bonita me dizendo o que devo ou não fazer. Moça, eu já fui casado e cansei do faz isso, não faz aquilo. Só desejo concluir a minha viagem e usar todo o tempo que me resta de licença como tinha planejado. Nada vai mudar isso, nem dinheiro, nem sexo, nem droga e rock’in roll. Fui claro?

-Claríssimo, só que agora é muito tarde para haver mudança nos planos. Fique calmo e quieto. É melhor o senhor continuar sentado e ouvir o resto. David ­creio jã poder lhe chamar assim, não é ? – lamento lhe informar que jãtomamos todas as providências necessãrias para obter a sua aquiescência, desde a sua demissão dos colégios que leciona, até no pagamento antecipado de dois anos das pensões alimentícias para seus filhos. E para demonstrar a nossa boa vontade e desejo de ajudã-Io, fizemos um depósito de cem mil dólares em sua conta corrente lã no Rio de Janeiro hã uns cinco dias. Aqui estão os comprovantes de tudo, mais as cópias de suas cartas de demissão. Você agora é nosso contratado e para efeitos legais você faz parte do corpo de professores de uma Universidade mantida por nós. Anualmente você receberã U$ 150,000 como salãrio e todas as suas despesas pessoais serão de nossa responsabilidade. Está tudo certo e bem legal. Não existe a menor possibilidade de queixa jurídica. Se tentar algo assim, o maior e único prejudicado será você.

David, embora profundamente surpreso e amedrontado com tudo aquilo que estava ouvindo, tentou argumentar e reagir às imposições feitas pela morena. Ela o ouvia com uma placidez irritante, dando a impressão de que estava com um pequerrucho teimoso e cheio de vontades. David sentia estar falando aos ventos e nem mesmo quando ameaçou se levantar para ir embora ela alterou o seu jeito calmo e sereno.

– Você ou vocês, pouco importa quem sejam, não podem fazer isso. Vocês não têm esse direito. V ocês pensam que são o quê ? Deus ou algo parecido ? Se você não for uma rematada mentirosa, é uma psicopata das mais loucas.

– É melhor você ficar bem calmo, sentadinho aí e ouvir o resto. Nada o que diga ou faça agora mudará alguma coisa. É melhor ouvir o que tenho para lhe contar.

David continuou sentado e ouviu. Um ouvir esquisito, pois, enquanto metade de sua mente recusava a crer no que estava acontecendo, a outra parte ouvia e se fascinava. Não chegou a sentir nenhum gosto nos ponchitos e nem nas tapas, tudo estava sem sabor. A morena, Cassandra – um nome pouco apropriado, pois, de acordo com a momentânea opinião de David, o mais adequado seria Pandora – integrava um organismo transnacional cuja função era evitar o controle político e econômico do mundo por parte de uma grande corporação internacional, que desenvolvia e mesclava atividades legais com ações criminosas. Para ele, aquilo tudo não era verdadeiro, era um autêntico pastiche dos filmes de James Bond. Sentia-se como um personagem de pocket-book policial. Rambla.jpg

A mulher bonita, mistérios, sabedora de perigosos segredos. O café ao ar livre. Gente de todas as partes do mundo. Só faltava ela levar um tiro e morrer dizendo uma frase que seria a chave para o desvendamento de toda a trama. Até a Cassandra, com o seu nome trágico-novelístico, os negros cabelos curtos, aqueles olhos azuis-escuros, o tailleur creme, o sotaque indefinível, a grande bolsa marron-claro, tinha todas as características de um bom film noir. Ficou ouvindo por quase duas horas aquele interminável relato de intrigas políticas, econômicas e policiais. Houve momentos em que quase caiu no riso aberto. Não pelos argumentos e história apresentados por ela, mas, principalmente, porque depois de alguns cálices de jerez, mais e mais sentia o quão absurda era a situação em que estava metido. .

Um professor de História, 40 anos, 1,82 m de altura, 78 quilos de peso, com uma incipiente miopia, pouco atlético e sem nenhum pendor para esforços físicos. Enfim, segundo a própria opinião, o tipo mais inadequado para missões de capa-e-espada ou na linha bondiana. Estava mais para o intelectual sedentário de gabinetes ou bibliotecas. Aliás, foi esse seu lado intelectualizado que se ligou no relato. Para ele, além deste aspecto de seu temperamento, a vontade de viver uma grande aventura, sentir na própria pele todos os arrepios e emoções vividos por seus velhos heróis, foi, mais do que outra coisa o elemento chave para a sua concordância.

Como se não bastassem esses estímulos, ainda que de modo escondido e dissimulado havia um outro apelo visceral, pois, David não conseguia deixar de observar a beleza de sua interlocutora e de fantasiar a respeito de um possível envolvimento amoroso entre os dois. Enquanto ouvia todas àquelas histórias rocambolescas e de suma gravidade, David ficava imaginando como é que ela seria sem a seriedade que a vestia mais do que a saia, a blusa e o tailleur. O que ele via era bastante sedutor e agradável a todos os seus sentidos, principalmente quando arfava pela emoção do relato e as duas grandes e rijas pêras ameaçavam a segurança do tecido, ou quando nervosamente cruzava e descruzava pernas merecedoras de mais do que uma missa, um ano sacro inteiro. Embora muito interessado na exploração visual e olfativa de Cassandra, David acabou prestando muita atenção ao que ela dizia, pois, certo ou errado, já estava envolvido.

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Konzern – I –

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O tempo estava muito agradável, sem frio, nem calor. Era um bonito fim de tarde, o sol, estimulando as cores das fachadas e telhados daquele pedaço d’Alfama, provocava-lhe recordações de outros tempos e lugares. Sua aparência e o comportamento eram o de alguém atento e maravilhado com o trabalho de restauração do casario e das vielas que, por serem lembranças do passado, curiosamente tinham atualidade. Demonstrava calma e segurança sentado ali naquela pequena taberna, quase no Largo de São Estevão, numa mesa que lhe permitia ver quase todo o largo e os acessos das ruas Guilherme Braga e do Vigário.

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A taberna, embora fosse bem pequena e com certo jeito de provisória, trazia-lhe a memória de outras tabernas, visitadas e prazerosamente freqüentadas quando passeava pelas ladeiras de Santa Teresa, Gamboa e Santo Cristo, no Rio de Janeiro. Mesas de ferro doce, tampos de mármore quase branco, um balcão de madeira maciça, aparentando ter sido feito de uma só leva e do mesmo tronco de árvore, prateleiras cheias de bebidas, correntes de paio dependuradas, chouriços, salames e outros defumados, reforçavam a lembrança pelo cheiro característico. Um cheiro que se misturava ao de castanhas, que era o cheiro de todo o bairro. Como estava sem fome e sabia que a demora poderia ser longa, provou e aprovou a ginja com pardal frito. Aliás, ainda estava bem vivo o sabor do bacalhau assado e do chouriço com ovos que comera no dia anterior, lá na Parreirinha d’Alfama. Come-se bem por aquelas bandas, tanto que se não fosse pelas subidas e descidas da escadaria com seus degraus de basalto, temeria por acrescentar uns quilos a mais em sua silhueta.

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Sua calma era real. Entretanto, algo o fazia estremecer, quase a sentir frio. Há pouco, no caminho para lá, acreditava que aquele encontro seria bem simples e fácil. Bastava ouvir as instruções e sair a cumprí-las. Sabia que fazer aquilo era aceitar a mais completa e total mudança de vida que algum dia pensara. E olha que a sua vida já estava muito modificada desde o dia em que dissera o primeiro sim. O fato real e concreto é que tinha concordado com aquelas propostas malucas, tanto que lá estava ele, em Lisboa, no Largo de São Estevão, numa terça-feira, 15 de outubro de 1996. De vez em quando chegava a pensar de que tudo aquilo não passava de um chiste. Era uma idéia bem fugaz, pois, logo lembrava que ninguém gastaria mais de quinhentos mil dólares apenas para lhe pregar uma peça. Até agora tudo correra bem para o lado dele.

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Ganhara um bom dinheiro até agora, seja pelos cento e cinqüenta mil dólares anuais de salários, seja pelo fato de que todas as suas despesas pessoais ficavam por conta de seus empregadores. Aprendera muita coisa, um autêntico homem do mundo, mesmo quando fora obrigado a viajar pela Europa, trocando de cidade, sem falar com ninguém, porém com ordens precisas sobre onde e quando estar. Primeiro foi Florença, Via Dell’ Ariento, atrás do Mercado Central, às 15 horas, 5 de maio de 1995. Depois, às 16 horas, 12 de julho de 1995, Paris, Montmartre, Lamarck e Damremont. Este ano, Londres, Soho, Beak.Street, em frente ao Hospital Saint James, 6 de setembro, às 11 horas. Nessas cidades, tão logo se esgotavam os quinze minutos determinados para a espera de alguém que nunca aparecera, aproveitava para conhecê-Ias como se fosse um florentino, um parisiense ou um legítimo e entediado londrino, sempre obedecendo a máxima de que “em Roma, como os romanos” e de que o mais exposto é menos notado.
Agora, ali em Lisboa, estava melhor preparado para ficar sozinho e muito mais para conhecer as delícias daquela cozinha que Eça tão bem tinha descrito, assim como apreciar os petiscos das toscas tabernas da Madragoa, depois um fado e o encanto da Mouraria. Embora estivesse quase torcendo para novamente ficar sozinho, sabia que alguém viria conversar com ele a respeito do que precisava saber e fazer, pelo menos assim era o que ela prometera, tanto que nem determinara o tempo de espera. Há mais de seis meses que não conversava com ninguém sobre o seu papel naquele enredo. Mesmo naquele período em que ficara sobre treinamento e estudos – artes marciais, etiqueta, táticas militares, economia, finanças, geopolítica, línguas, etc.-, nenhum de seus instrutores e professores aumentara o conhecimento que obtivera com os vídeos e documentos recebidos regularmente.
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Tudo ele fez para conseguir mais informações e descobrir quem o estava empregando. Seduzira instrutoras, professoras, dera caros presentes, invadira o computador do centro de treinamento, tentara saber qual o papel dos outros treinandos, nada obtivera. O máximo que conseguira foi perder algumas liberdades, como as saídas de fim-de-semana e os passeios pelas cidades próximas. A informação parecia não estar ali naquele conjunto de casas no sopé do Hoher Göll. Assim, como não havia outro modo, o jeito foi fazer dos treinamentos, dos estudos e das pequenas aventuras esportivas um processo para não enlouquecer de curiosidade. É bem verdade que a sua recrutadora, nas quatro vezes que o visitara, ao sabatiná-lo sobre os vídeos e documentos, lenta e casualmente ia dando forma e conteúdo ao que desejava saber. O problema é que isso ainda era um procedimento bem interno, sem as características de algo consciente e bem lógico.
Pensou nos filhos e em sua família que estavam bastante orgulhosos de seu sucesso como professor na Europa. Já estivera com eles três vezes desde o primeiro encontro com seus atuais empregadores. Na primeira feita, quando voltou ao Rio de Janeiro, dois meses depois desse primeiro contato, ficou apavorado quando soube que todos os seus familiares, amigos, inclusive a sua ex-mulher e antigos colegas de magistério acreditavam que tinha sido contratado por uma Universidade particular, sediada em Salzburg, a terra natal de Mozart. Esse conhecimento viera dos documentos encaminhados aos colégios em que lecionara e pelos cartões-postais enviados para quase todas as pessoas de seu relacionamento. O dinheiro remetido era a prova que faltava, principalmente para a sua ex-mulher, Louise, “puxa vida, até quem enfim você consegue fazer alguma coisa certa. É bom não se esquecer que ainda nos deve umas férias na Europa”.
Pelo menos, tinha que reconhecer e ser grato, aquela dinheirama estava lhe assegurando certa calmaria em seu trato com Louise e com os filhos André e Jean-Marc, fundamentalmente por causa do novo apartamento em Laranjeiras, próprio e muito maior que o outro – numa daquelas travessas do Flamengo que, além de ter um aluguel bem caro, primava pela umidade e uma pernanente penumbra em qualquer tempo, hora ou estação do ano. Para os pais e irmãos, que sempre lhe ajudavam em caso de necessidade, comprou um pequeno sítio em Teresópolis e presentes. Uma mágica só possível pela surpreendente valorização da moeda brasileira frente ao dólar.
Do local em que estava, ele a viu chegando, tinha subido pela rua do Vigário. Vinha andando calmamente, como se todo o tempo e o espaço do mundo ao seu dispor estivessem. Seus passos firmes e o modo de olhar chegavam a chamar a atenção pela agradável e inusitada mistura de força e fascínio. O vento, lascivo e exibicionista, contando com a cumplicidade de seu estampado floral vestido de seda, moldava formas que, se não eram as mais perfeitas, para ele, David, tinham a força e a beleza necessárias para construir a mulher ideal. “É uma bela mulher”, pensou, observando aquelas pernas torneadas que sustentavam e davam movimento para as curvas esculpidas pelo vento. Tudo contido em 1,70m de altura e uns 60 quilos de peso. O cabelo “príncipe Valente”, tanto no corte, quanto na cor, era a perfeita moldura para aqueles olhos azuis-escuros. Olhos que circulavam entre a sensação de tristeza, zombaria e riso aberto em décimos de segundos. Ao vê-lo, sorriu com alegria. Um sorriso que a transformou de bonita em lindíssima. David nem notou que correspondera ao sorriso, tão entretido estava em mirá­la e preocupado por se sentir novamente muito alegre com a sua presença, embora ainda não soubesse classificá-la como amigo ou inimigo.
Enquanto ela cada vez mais se aproximava, David, instintivamente, lembrou-se das lições de Musashi Miyamoto – ken no sen, kai no sen e tai tai no sen – acuar, aguardar para tomar a iniciativa e acompanhar o inimigo, antecipando-se a ele. Estas lições e as de Sun Tzu, de a “Arte da Guerra”, já faziam parte de sua mente e de seu comportamento cotidiano. Para ele, um professor de História, até que não foi muito complicado aprender e compreender os usos e aplicações dessas lições. Lições que foram de extrema importância para memorizar e automatizar os seus reflexos e reações durante o exaustivo período em que aprendeu artes marciais e táticas militares. O difícil foi aprender a desenvolver o hara, o qi e torná-los parte integrante de seu giri.
A chegada dela o tinha retirado de seu cham tai. Levantou-se para recebê-la e antes dos formais cumprimentos, houve um momento em que pelos olhares ambos expressaram a alegria de estarem juntos de novo. Ela deu a impressão de aprovar o modo de como estava vestido. Blazer azul-marinho, camisa azul-clara, gravata azul com duas tarjas, uma vermelha e uma amarela- escuro, calça e botas marrons. Os cabelos castanho-claro, curto e ligeiramente gris, os óculos de armação quase retangular, realçando os claros olhos castanhos e compondo o conjunto, davam-lhe um aspecto distinto, respeitável e de fina educação. Reforçado pelo seu porte físico, 70 quilos de rijos músculos em 1,82m de altura. Chegar àquela compleição física e atlética lhe causara muito cansaço e dores no corpo. Um sacrifício plenamente justificável pelo resultado atual. Hoje, fizesse o tempo que fizesse, estivesse onde estivesse, refazia todos os principais exercícios e movimentos das artes marciais e de auto controle físico-mental. Era o processo que o mantinha em forma e o modo que lhe permitia mentalmente sustentar o disfarce escolhido por ele.

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